terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Sequidão

Olho à minha volta e somente vejo sequidão, aridez. Tento caminhar e logo o corpo se queixa do calor, da sede, do cansaço; é difícil continuar. A mente cria ilusões para tentar consolar-me, enganando meus sentidos com imagens falsas do que me poderia aliviar. E tantas vezes deixei-me enganar por mim mesmo, abraçando o vazio dessas ilusões, adiando minha chegada por causa de satisfações passageiras!

Os sentidos enganam, e enganam mais quando são por muito tempo privados dos deleites que tanto amamos. Fantasias se insinuam na imaginação como se fossem realidade, recriam figuras que no passado foram ocasião de pecado, tentam fazer tropeçar a alma em pedras imaginárias, assustando-a com vultos que já não existem. É a fraqueza humana, que sempre pende para baixo.

Como me atormentam tais pensamentos! Como me perturbam e me tiram a paz essas imagens que já não desejo, que já abomino, mas que insistem em permanecer nesta casa em que não são mais bem-vindas!

Ó doce Amor, meu Jesus, minha vida! Penetrai minha alma com Vossa suavidade e expulsai de mim esses Vossos inimigos que tanto me perturbam. Quisera ter diante de mim somente Vossa imagem, Senhor, e contemplar ininterruptamente Vossa paixão para, assim, purificar-me daquelas imagens que me tiram a paz! Vós podeis, amado Salvador, privar-me dos deleites e das vaidades do mundo, mesmo quando me faltam forças e vontade de afastar-me deles. Privai-me deles por Vosso amor, Senhor, para que Vos ame sobre todas as coisas e queira, como Vós, aniquilar-me totalmente, esvaziar-me de mim, negar-me a mim mesmo para Vos seguir em Vosso caminho. Assim seja.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Méritos

Jesus: Se quiseres amar-me, deves ser humilde em todas as coisas. Deves não só ser humilde, mas preferir a humilhação aos elogios, se quiseres amar-me. Diante de mim nenhuma virtude é mérito. Enquanto te gloriares de tuas virtudes, não me amarás, porque verás na virtude o princípio do amor. É preciso que te humilhes, assim virei a ti e, então, a partir de mim, tu me amarás. É o amor o príncípio de toda virtude. 

Alma: Verdade é o que dizeis, Senhor, e feliz aquele que o põe em prática. É verdade também que ninguém pode chegar a esse estado sem o Vosso auxílio. Muito me aflijo quando vejo meus defeitos e vícios, e sei que pouco Vos tenho amado, porque muito me angustia este estado de humilhação em que me encontro hoje. Precioso é esse Vosso ensinamento, e feliz seria eu se o pusesse em prática, mas ainda sou fraco, e por isso o mais infeliz dos homens.

Jesus: Não deves logo desesperar-te quando vês que estás demasiado distante da meta, mas animar-te, porque ainda há tempo para caminhar. Fez-te bem seres humilhado, para que aprendesses a obedecer meus mandamentos (cf. Sl 118, 71), e não te gloriasses daquilo que faço por ti como se fosse retribuição pelos teus méritos. Tua fragilidade tornou-se, pois, tua virtude, porque por ela me recebeste hoje em tua casa.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Amigo

Coração amigo
Tão perto do meu
Encontros tão íntimos
Partilhas sem palavras
Abraços dados na alma

Coração amigo
Tão perto do meu
Sentimentos comuns
Caminho diverso
E um mesmo destino

Coração amigo
Tão perto do meu
Cuja vida me ensina
A olhar para cima
E ser mais de Deus

Coração amigo
Tão perto do meu
Com olhares tão puros
Aos poucos faz puro
O meu coração

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O que é a vida

Voz do Mestre:

O que é a vida? Responda-me sinceramente. Não vejo em tuas mãos a vida que dizes possuir, da qual falas e ris tantas vezes a cada dia, por parecer-te melhor que a vida dos outros, apenas porque não dependes de favores e esmolas. Acautela-te contra ti mesmo e desperta para a vida, não esperes que a morte revele aos teus olhos o que é a vida, quando já não a tiveres em tuas mãos.

Se continuares assim, me dirás naquele dia: "Senhor, amei-Te sobre todas as coisas!" E Eu te responderei: "Mas não amaste a teu próximo como a ti mesmo. Na verdade, tua sede de riqueza fez de ti mesmo teu deus, ainda que não o quisesses admitir. A esse deus, sim, amaste sobre todas as coisas. Que todos se curvassem diante de ti era teu desejo, que reconhecessem teus méritos e louvassem tua superioridade diante de todos."

"Se queres ser perfeito, vende teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu" (Mt 19, 21). És capaz de fazer isso, ou essa possibilidade ainda te parece pesada demais? Desprezas ainda os que isso fizeram porque a coragem deles zomba de tua covardia. Queres mesmo ser perfeito? Não te peço que te tornes pobre e miserável, mas que teu coração o seja, de tal modo que não te perturbe a possibilidade de abandonar ou de doar alguns de teus bens por causa de meu Reino. Desperta agora, enquanto ainda há tempo e remédio.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Viver

Quero escrever hoje algo mais espontâneo que de costume. Corro sempre o risco de perder a espontaneidade na tentativa de evitar erros gramaticais. Mas, pensando bem, gosto de ser espontâneo no conteúdo do que digo, ainda que dê, às vezes, um pouco mais de atenção à roupagem.

Escrever sempre foi um mistério pra mim, especialmente antes de me intrometer no meio literário. Não gostava de ler, quanto mais de escrever. Hoje vejo, colho e vejo outros colherem frutos dessa descoberta tardia e inesperada, de todo repentina. Que fosse sempre de Deus, porém, sempre foi objetivo primeiro, ainda que às vezes se insinue, na minha palavra ou na elegância que tento costruir, um desejo de ser reconhecido por aquilo que faço. Mas, o que eu realmente faço? Sinceramente, não sei. Certa vez ouvi o cantor Rich Mullins, de venerável memória, dizer que, pra ele, escrever era como pescar, bastava jogar a isca e esperar. É o que faço e sempre fiz, mesmo antes de ouvi-lo dizer isso. Gosto que seja assim. Até mesmo este texto nasce desse jeito. Joguei a isca, a primeira frase deste texto, e o resto saiu de meus dedos. Simples assim.

Talvez você se pergunte: qual o objetivo de dizer essas coisas? É simples também. Quero chamar a atenção de meus caros leitores para a vida no Espírito. Renascer da água e do Espírito, exigência que o próprio Jesus faz para os que querem ver o Reino de Deus, é deixá-Lo livre, deixá-Lo ser Deus em nossa vida, no trabalho, no estudo, na vida social, no descanso e no lazer. Não é simples? Não precisamos ficar pensando: "o que Jesus faria agora?" O que Deus pretende em nós é mais simples. Digamos assim: "Espírito Santo, não sei fazer, por isso peço-Te que o faças Tu mesmo". Não é mais simples e fácil? Ser de Deus não é um mistério, é vida de todo dia, é espontaneidade, é jogar a isca de um desejo sincero e esperar que Deus a "morda" e faça o que não sabemos fazer. E porque não também o que sabemos?

É um convite que faço a todos. Renasçamos da água e do Espírito, para que possamos ver o Reino de Deus que com tanta insistência pedimos que venha a nós!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Fraquezas

Como é possível que sobrevivam ainda em mim vontades que tanto contrastam entre si? Como é possível que eu ainda aja segundo meus próprios impulsos e não pela graça de Nosso Senhor? Não posso compreender minha fraqueza, posso somente aceitá-la. Mas como querer submeter-me à minha fraqueza quando o Senhor me oferece Sua própria força para que eu permaneça de pé? Como posso ainda preferir minha debilidade diante da graça de meu Jesus?

É grande minha infidelidade, maior minha vaidade, e ainda maior meu orgulho, que a todo tempo deseja gloriar-se de uma sabedoria que não possui. Como posso seguir ao Senhor nas grandes coisas e ser-lhe infiel nas mais ínfimas tentações? Poderia ter fugido, mas minha fraqueza foi maior que o medo e, por fim, fui ferido de morte. Poderia ter rezado! Quisera uma dor lancinante me tivesse atingido naquela fatídica hora! O sofrimento certamente poderia ter-me salvado! Sou agora alvo de zombaria e escárnio, minha própria carne agora me despreza e envergonho-me diante dos que foram vítimas de minha traição.

Depois das quedas costumo procurar motivações para levantar-me, mas quais são elas senão aquelas que primeiro me fizeram colocar-me de pé diante do Senhor? Porque ainda preciso que me seja reavivada a memória delas, porque ainda traio o Senhor, porque não temo perdê-Lo para sempre? Como pude trair meu Jesus com um beijo, amá-Lo somente com palavras e obras que os homens veem, mas que Ele mesmo não conhece?

Prostro-me agora aos Vossos pés, amado Senhor. Venho suplicar-Vos misericórdia, porque sei que ela é eterna, e infinita é Vossa paciência. Tende compaixão deste Vosso servo inútil que agora chora aos Vossos pés a pedir-Vos perdão. Não posso levantar-me sem que me perdoeis, não posso ser fiel à Vossa palavra sem uma ordem Vossa, sem que Vós mesmo me levanteis, não com uma motivação, mas com Vossa mão a re-erguer-me e sustentar-me. Prometo-Vos agora, Senhor, com Vossa graça e auxílio, ser-Vos fiel em todas as coisas, das pequenas às grandes, no segredo e entre os homens, na solidão e em meio à multidão, no silêncio e em meio ao ruído do mundo. Ajudai-me, por misericórdia! Assim seja.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Vendem-se verdades

Verdades não podem adaptar-se aos ouvidos dos destinatários. Boatos ou não, pensar nessa possibilidade me assusta. Não consigo conceber como alguém pode ser egoísta a tal ponto que ignore completamente o direito do outro de conhecer verdades que o são de fato. Aproximam-se dos outros e a cada um relatam os fatos sob uma máscara diferente, mais aceitável, mais desejável para o ouvinte. Vendem as verdades que conhecem por um valor desprezível, pela satisfação egoísta de ver o outro sorrir, de ser cuidado pelo outro quando fala com lágrimas nos olhos o que a outro falou com gozo e satisfação. Prostituição estranha essa. Tenho a nítida impressão (e a cada dia que passa me vejo forçado a crer que não é mera impressão) que as tramas das novelas estão moldando a maneira de agir e pensar de nosso povo e tornaram-se seus vícios, mascarados pela sua "liberdade de expressão".

Às vezes penso, talvez num excesso de misericórdia, que as pessoas não agem assim por maldade, mas por má educação e por uma grande necessidade de se esconderem da própria baixa autoestima. Por outro lado, penso naquelas que agem assim e se declaram cristãs. Esquecem-se de toda a lei de Deus, não o amam acima de todas as coisas, mas a si mesmos acima de todas as coisas. Tomam Seu Santo Nome em vão, dizendo Senhor, Senhor, sem ter parte no reino de Deus, que é verdade e justiça. Não santificam os domingos e festas de guarda, ainda que nesses dias participem das celebrações comunitárias, por que deixam de lado a vida em comunidade, o amor ao próximo. Não honram seus pais, praticando valores que não são, absolutamente, motivo de honra. Matam o outro, ferindo-o ocultamente com mentiras a que chamam verdades. Pecam contra a castidade, contra a integridade moral, sua e dos outros, ferindo a dignidade de todos. Levantam falsos testemunhos, e isto por excelência. Cobiçam, por fim, as coisas alheias, num desejo incontido de satisfazer as necessidades criadas por suas próprias frustrações. E ainda se dizem cristãos...

Não falo essas coisas com a pretensão de parecer perfeito na prática dos ensinamentos do Senhor. É sempre mais fácil acusar o outro de arrogância do que admitir os erros de que ele nos acusa.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Seguindo

Muitas vezes me perco no meio de minhas contradições e incoerências, mas não perco a esperança, sigo em frente na mesma direção que o Senhor me indicou quando inciei a caminhada. Sou ainda fraco, mas Deus me deu inteligência para escolher o melhor, mesmo que erre algumas vezes; meus sentidos costumam falhar, não vejo, não ouço direito. Mas, escolhas erradas, quem nunca as fez? Não quero, porém, ser mais uma vítima do conformismo e "acostumar-me" às minhas fraquezas, quero tornar-me melhor, e cada queda que sofrer será um erro eliminado de meu futuro. Não posso acrescentar um segundo pecado ao primeiro (cf. Eclo 7, 8), meus erros devem ser sempre únicos e solitários.

Neste cenário ornado debilidades decorre esta história que desejo seja escrita por inspiração divina. Chamem-me pretensioso se quiserem, mas o Senhor me permite desejos altos. "O que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará." (Jo 16, 23) Isto peço ao Senhor: santidade. Como posso ser santo sem que isto me seja concedido do alto? Creio que santidade é poder dizer: "Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20).

Quero seguir assim, enquanto Deus ressuscita em mim o que havia se tornado antigo e disso faz expressão da novidade eterna de Seu Amor. Aos poucos redescubro a vida que havia em mim antes da morte e encontro no que estava morto motivos e razões para a vida que agora floresce. Quero ser como aquele "pai de família que tira de seu tesouro coisas novas e velhas" (Mt 13,52).

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cristãos?

Assusta-se a maneira como a auto-defesa tornou-se tão essencial no meio cristão. A guerra de emissoras que temos assistido nos últimos dias me deixa impressionado com a contradição que há nas palavras de um dos lados, “deixando claro que não estão em guerra” e “exercendo o direito de defesa”, mas seguem aquele antigo e estranho princípio que diz que a melhor defesa é o ataque. É estranho reprovar no outro o que eu mesmo faço, especialmente quando me apresento diante de todos como cristão, seguidor do Cristo que ensinou a oferecer sempre a outra face a quem me bater (cf. Mt 5, 39).
Hoje vejo o egoísmo espalhado por todos os lados, até mesmo entre os discípulos de Cristo. Condenamos Judas por trair Jesus, mas em todos nós há traços de sua perfídia. Traímos Jesus por poucos trocados, por um pouco de fama, um pouco de dinheiro, um pouco de prazer e satisfação. Vejo isso por todos os lados. Vejo isso em mim mesmo. Alguém nos acusa, somos imediatamente movidos por uma instintiva indignação e estamos prontos a nos defender contra toda ofensa, seja ela verdadeira ou falsa, levantando a bandeira dos injustiçados e gritando para todos os lados: “tende pena de mim, sou inocente”. E ainda nos dizemos “imitadores de Deus” (cf. Ef 5, 1), que foi conduzido como “ovelha ao matadouro, não abriu a boca” (cf. Is 53, 7). Minha mãe costuma dizer que quem não deve não teme, e que atitudes denotam mais claramente o temor do que a fuga e essa hostilidade?
Vejo empresas riquíssimas disputando mercado e atenção dos “fiéis” [telespectadores e dizimistas]. Até que ponto vai a nossa fé em Jesus Cristo? Dizemo-nos cristãos e ainda nos atrevemos a citar o apóstolo Paulo dizendo com toda petulância possível: “não vivo eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20), mas agimos como quem não o conhece. Jesus tornou-se apenas um slogan atrativo, e os milagres, hoje tão naturais, nossas promessas falsas para atrair a opinião popular.
O Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9, 58), e quem o quisesse seguir deveria deixar tudo para trás (cf. Mt 19, 21), e alguns hoje ainda crêem na benção que se manifesta na prosperidade, na abundância de riquezas, que acabam por motivar conflitos. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mt 19,24) De quantas riquezas somos nós possuidores! Nossas opiniões, carros, emissoras de televisão, igrejas!
Por isso costuma-se dizer que a voz do povo é a voz de Deus, é mais fácil.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Vida

A vida é revelação do que está dentro de nós. Nascemos e somos de algum modo iluminados por uma luz que até então desconhecíamos e aos poucos nos vamos construindo, a partir dos materiais que guardamos com o passar das horas. A matéria prima de quem somos é o que entrou em nós por força daquela luz do princípio, nossos sentidos trazem o mundo para dentro de nós e assim seguimos vivendo, mas não somos apenas sentidos, somos também espírito, vida que não pode viver de instintos, de escolhas aleatórias pelo que mais satisfaz. Às vezes penso que a vida tem, na verdade, seu início nessa descoberta, na visão desta luz que alcança mais do que aos nossos sentidos e sentimentos, vai ao nosso espírito. É neste contraste que está a vida, na aparente morte do que nos é sensível, quando os sentidos se tornam secundários. Acredito nesta verdade, quando somos capazes de deixar os limites vagos do que sentimos é que realmente nascemos. Nascer é de algum modo romper com uma realidade passada, é sempre morte – paradoxo estranho da existência, porém sempre verdadeiro, a páscoa é sempre concreta. Não quero permanecer na superfície de mim mesmo, eu quero morrer, quero viver. Espero que você queira também. Este é meu desejo mais sincero.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Morte

Eu não podia consolar os corações que choravam, meus gestos ficaram restritos a olhares e abraços. Um olhar baixo foi o que escolhi, única expressão que fui capaz de fazer da compaixão que sentia.

A morte, mistério insólito que segue ferindo o amor humano, que sempre nos comove e de algum modo nos paralisa, como numa tentativa incansável de nos fazer valorizar mais nossa própria vida, pelo simples vislumbre de nosso destino comum, escondeu-me as palavras que tão facilmente costumava encontrar, e nada soube dizer ou pensar. Meu silêncio, porém, não era fúnebre, e a dor que oprimia meu coração fazia-me pensar, já livre de todo vestígio de desejo de consolar alguém, e encontrei naquele vazio a satisfação de ter podido provar a verdadeira compaixão, que não consiste em fazer-se suporte para aquele que sofre, mas em partilhar a dor do outro sem pretensões de oferecer alívio. Somos um só corpo, em Cristo, e assim temos uma só cruz.

Em meu coração deixo espaço para lágrimas que não são minhas, para que sejam.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Caminhos

O espírito anda por caminhos que nossos olhos não podem ver, nem nossas palavras descrever, mas, na tentativa de fazer prevalecer a regra que nos manda dar ao outro o que de bom encontramos na vida, vamos distribuindo palavras a todos quantos puderem ouvir.

Os caminhos da alma não são sinuosos, mesmo que temamos que sejam, e isto nos dá uma liberdade que frequentemente ignoramos por causa do medo de que não seja assim como nos dizem, ou como Deus nos diz. Gostamos de falar, de reclamar, e nunca nos faltam queixas contra os conselhos que nos são dados, por causa de nossa teimosa preferência por nossa própria opinião e avaliação da vida. Reivindicamos certezas e garantias para justificar a coragem que devemos ter, nos esquecemos que a verdadeira coragem sabe ousar, e sabe confiar nos que já passaram pelos mesmos caminhos.

Vigora também em nossa alma a lei do menor esforço, desejo contínuo de apenas fruir as delícias de Deus, fazendo dele nossa colônia de férias, e o abandonamos quando as necessidades da vida nos trazem ocasiões de amadurecimento, longe de contentamentos, satisfações e consolações, de Deus ou não.

Volto a dizer, os caminhos da alma não são sinuosos, mas, enquanto insistirmos em querer satisfazer nossos gostos antes de empreendermos a caminhada, ou mesmo durante a caminhada, estaremos inventando atalhos que certamente nos levarão para muito longe do destino original, Deus.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Panos sujos

Estávamos eu e uma de minhas irmãs aguardando que se iniciasse o atendimento de confissões quando fomos informados de que o único padre que estava presente presidiria a missa naquele dia e que por isso não haveria atendimento. Sentamo-nos ao fundo da Igreja, com um certo pesar e um pouco tristes por ver afastar-se no tempo a reconciliação sacramental com o Senhor. Apenas nos sentamos e um homem se aproximou pedindo que rezássemos um Pai Nosso e uma Ave Maria por ele, porque estava prestes a cometer suicídio, para que não o fizesse. Não hesitamos. Levantamo-nos e fomos com ele até diante de uma imagem do Senhor Crucificado que ficava ao fundo da Igreja, e ali ele se colocou de joelhos e rezamos, os três juntos, as orações que ele nos pedira. Rezamos ainda um pouco além do que nos fora pedido e aos poucos sua alma se foi acalmando diante do silêncio do Senhor Morto que o confortava e acalentava. Ao fim da oração ele nos falou um pouco das dificuldades que estava enfrentando em sua casa, para as quais não via solução, e nos pediu que o ajudássemos a comprar comida e disse, repetidas vezes, que não queria dinheiro, mas o alimento de que tanto precisava, e que nós, se preferíssemos, poderíamos acompanhá-lo até o mercado. O Amor do Senhor não nos permitiu desconfiar dele e lhe demos o que tínhamos ali. Ele se foi e nunca mais o vimos.

Depois de nos despedirmos dele, sentamo-nos de novo e rezamos, em silêncio, por alguns instantes. O que o Senhor quis permanecesse em nós depois daquele encontro eu trago em meu coração até hoje e jamais será esquecido. Estávamos ainda marcados pela culpa, não tinhamos nos confessado ainda, quando Cristo nos mandou servi-lo naquele homem. Uma Palavra simples do Senhor penetrou meu coração e, ao mesmo tempo em que me consolava, me oprimia e fazia pesar sobre mim a responsabilidade que assumi quando me consagrei a Ele. Diante daquela Palavra não era preciso dizer mais, e agora também não ouso fazê-lo: "Mesmo com panos sujos, Deus sabe limpar".

terça-feira, 30 de junho de 2009

Solidão

A solidão é caminho de poucos. Não sei dizer bem, e não sei se posso dar detalhes precisos, mas ela faz parte de mim, mesmo com muitas companhias, mesmo identificando-me com a vida comunitária e encontrando-me nela. É também caminho estranho, árduo, de muitas lágrimas e rebentos regados aos poucos.

Os sentimentos às vezes querem trair o que o amor diz, por vezes são fortes e violentos como cães, e em outras são mansos como pombas. Suas muitas variações diárias são difíceis de domar, às vezes de resistir, mas o combate é compensador. Uma pergunta, em meio a esses numerosos conflitos interiores, aflige meu espírito: Se tu soubesses o que te espera, acaso serias prudente em teu agir?

A resposta frequente é misteriosa. A sabedoria reside na paciência, no silêncio que espera e age sem pressa, no domínio dos próprios impulsos e desejos de tudo apreender, é ser prudente, despir-se do desejo de preparar-se para o futuro a partir de um conhecimento prévio do que ainda não é.

Minha vida é constante aprendizado desta verdade que meus sentimentos costumam esconder de si mesmos, enquanto minha razão tateia, ávida por encontrar uma porta de saída da insegurança que a incerteza nutre. A solidão é minha companheira nesta jornada, é ela minha conselheira de todas as horas, escura luz que me ilumina os passos.

Ser só é dom de Deus, tesouro riquíssimo que Ele quis confiar aos meus cuidados. Que poderia eu querer senão o que Ele me dá em sua insondável vontade? É o que desejo, é o que alimento, para que permaneça até a eternidade, sem profanações. É caminho de incertezas, que exige cuidado constante, e que revela recantos do coração que, apesar de serem vistos pelos amigos, não podem ser por eles tocados. É minha cruz particular, não posso dividi-la com outros, cujo peso se tornará suportável à medida que as outras forem suportadas por outros ombros além dos meus.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Não Sei

Não sei se cabe aqui falar dos sentimentos
Das dores que me vão na alma e que não vejo
Pesares que corroem meu pouco de vontade
Pequeno desejo que está lentamente a morrer

Não sei se saberei falar de meus muitos sonhos
De meus planos vários para um depois distante 
Vontades curtas que apenas ao tempo alcançam
Esperanças muitas que muito facilmente morrem

Eu não sei descrever o que me fere o coração
Mas sei que o anseio por alívio faz crescer a dor
Sei que a dor que guardo sem querê-la em mim
Guarda-me do risco de perder-me em satisfações

Não sei o quanto do Eterno eu trago em mim
Mas sei não é somente o tempo que rege meu agir
Hoje quero ver-me livre dos desejos temporários
E ter em mim um só desejo pelo que nunca passará

terça-feira, 16 de junho de 2009

Pensamentos reticentes

O pensamento que não continuou, palavra que abriu portas à curiosidade, frustração do autor que se transforma em inspiração para o ouvinte. Eis um espaço privilegiado para a criatividade, espaço de liberdade para ambos, falante e ouvinte. Tenho uma amiga que gosta deste sinal às vezes tão pouco sugestivo e que costuma despertar em nós um certo desinteresse pelo discurso que "terminou" nas reticências. O interessante é que sempre que a ouço interromper suas sentenças assim minha alma se sente profundamente incomodada e, desde a primeira vez que a ouvi falar assim, uma sabedoria muito simples começou a permear meu coração. Pensamentos inconclusos fomentam a fraternidade e motivam os ouvintes à responsabilidade de encontrar um final para aquilo que ouviram. A curiosidade nos torna criativos. A curiosidade nos instiga a perscrutar a alma daquele que disse "pela metade", a fim de compreendermos o que queria ser dito, além do limite das reticências. Eu chamaria isso de sensibilidade simbiótica. Preciso aprender a perceber o mundo a partir da percepção do outro, permitindo que minha sensibilidade se estenda até onde olhos alheios alcançam.

Os amigos, permitam-me falar deles agora, são os que mais se aproximam da realidade que nosso discurso não foi capaz de alcançar. A eles não precisamos dizer muito, e podemos até "começar" com as reticências, porque mesmo elas, para eles, são janelas por onde vêem nossa alma. Todos precisamos de alguém assim, para quem sejamos transparentes, do contrário jamais seremos conhecedores de nós mesmos, porque nossos pensamentos, queiramos ou não, são sempre reticentes a respeito do que somos.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Santidade

Sou um discípulo tardio da poesia, amigo recente da prosa e das alegorias das palavras. Os poetas não costumavam figurar no meu quadro de interesses, e o elenco de meus objetivos contemplava sempre ao longe seu palavreado enigmático e excessivamente alegórico. Quem diria que hoje me contaria entre eles? Foi uma descoberta estranha, num repente que não sei descrever, do qual conheço apenas o ponto de partida.

Agostinho era o nome daquele personagem cujo desconhecimento me cativava. Uma vida que resgatou a minha das rédeas de minha aversão à sensibilidade humana. Almas que se desvelam tem o dom de iluminar outras que delas se aproximam. Foi o que aconteceu. Hoje colho os frutos daquele fortuito encontro que minha curiosidade motivou. Às vezes paro, pensativo, tentando descobrir de quem, de fato, foi a iniciativa, minha ou dele.

Nós católicos temos um jeito poético de nos recordarmos daqueles que foram para nós exemplo de vida cristã. Nós os chamamos santos, por que portadores da verdade do Evangelho e em cuja vida os defeitos não prevaleceram. Santo Agostinho é um deles, filósofo, místico, músico, poeta, sacerdote do Altíssimo a ensinar-nos o caminho de subida ao paraíso pelos degraus humanos. Considero-o meu amigo, mesmo sem o poder ver e abraçar, porque Aquele que por meio dele encontro me preenche a tal ponto que as palavras de desalento que os descrentes ou minha frágil humanidade me dizem perdem completamente sua força.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Distrações

Assusta-me a força que a distração tem sobre nós. Tão facilmente nos distraímos que nos esquecemos completamente da vida, dos ocasos e acasos da existência. De fato, seria insuportável viver sem esses alívios instantâneos para nossa consciência ocupada e preocupada, mas chega a ser irracional a importância que damos a esses pequenos paliativos para nosso estresse.

Campeonatos de futebol, novelas, reality shows, vida particular de "celebridades"; estes são apenas alguns temas que figuram em nossos assuntos correntes. Assusta-me ver pessoas preocupadas com essas realidades enquanto em si mesmas estão completamente desintegradas emocional, social e afetivamente. O significado da natureza humana se perdeu na nossa incapacidade de olhar o mundo a partir de nós mesmos. Alienamos nossa identidade nas mãos de personagens imaginários e distantes de nossa realidade; pessoas que nem sequer sabem de nossa existência (ou que nem mesmo existem) são objeto de nossas preocupações, numa tentativa já quase desesperada de encontrar razões e significados consistentes para a vida. Distribuímos opiniões como panfletos, apenas pelo prazer de que saibam que ouvimos falar, que estamos informados. É mais fácil construir "reflexões" a respeito da vida dos personagens das novelas, do desempenho dos times de futebol nos vários campeonatos, do comportamento dos famosos do que ocupar-se em cuidar da própria vida.

Não posso negar, a impressão que tenho é que vivemos tentando voltar os nossos olhos somente para o que não nos incomoda, para assuntos em que nossa opinião é sempre dissociada da ação, num esforço estranho de ocultar feridas sem curá-las. Tornou-se ocupação de loucos o silêncio interior. Eu sempre digo que preciso conviver comigo e frequentemente os que me ouvem reagem como se estivessem diante de um fato bizarro, ao mesmo tempo em que ficam desconcertados diante desse "óbvio escondido". Preocupemo-nos, pois, com a obra de que fomos encarregados, não a deixemos nas mãos de operários estranhos e desconhecidos sem nossa supervisão.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Razões

Estive pensando a respeito das razões de minhas palavras, suas causas, seu nascimento e todo o caminho que trilham dentro de mim até que se tornem expressão. Não sei dizer ao certo, nem mesmo posso dizer que me aproximo da realidade nesta tentativa de descrever aquilo que escapa à minha capacidade analítica, à minha lógica tão curta. Às vezes parece-me ser natural descrever sentimentos com as muitas vezes repetidas alegorias amadas pelos poetas; em muitas outras vezes, na maioria delas, creio eu, não passa muito tempo até que a reserva de palavras naturais se esgote e eu me veja forçado a abrir uma espécie de baú em minha memória para tomar novamente nas mãos pensamentos antigos que talvez possam continuar o novo que começara a despontar. Confesso, essa busca interior é um esforço necessário para que a inspiração não morra, para que a palavra que motivou a obra e que lhe deu início não morra em vão, mas, muitas vezes, eu olho para este empenho de continuar e o vejo como uma traição àquela naturalidade do início, como se toda a obra devesse nascer dessa espécie de "inconsciente artístico" que nasce de minha sensibilidade; apesar disso, logo vejo as razões de não ser assim. O nascimento é sempre espontâneo, porém o cultivo é imprescindível; o interessante nisso tudo é que quando o esforço é honesto ele se torna tão natural quanto a inspiração.

domingo, 10 de maio de 2009

Redundâncias

Tantas vezes fui traído pela minha capacidade de falar que falhou, que me fez parar no silêncio constrangedor de interromper o discurso por não saber continuar. Repetições, períodos que voltam e ocupam o lugar dos que eu não soube construir. Palavras que dizem o que outras já disseram, sinônimos que disfarçam a ignorância e escondem a incapacidade de dizer o novo dizendo de novo. Palavras que se repetem que apenas descrevem o que não é apenas discurso, símbolos de redundâncias concretas que viciaram nossos olhos, neutralizaram nossa capacidade de mudar, de diferenciar, de nos distinguirmos dos outros. Viver é esforço contínuo para alcançar a liberdade, a suavidade de ser natural, sem a artificialidade dos discursos contruídos para parecerem profundos e esclarecedores. Esta é a vida que eu escolhi.

Quisera que a vida fosse sempre original, sempre nova em todos os olhares, inclusive no meu. Trago comigo a Palavra que me permite dizer, que constantemente me interpela a respeito daquilo que sou antes que eu queira dizer qualquer palavra que seja, e que sustenta em mim a vida que questiona a si mesma se aquilo que disse tornou-se vida, para que não seja mais necessário repetir. Repetições, redundâncias que costumam denotar a recusa em transformar o que enunciamos e anunciamos naquilo que vivemos. Deus, eterna matriz de minhas razões, desejo seja Ele o sujeito dos verbos que ainda não conjuguei.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Relógio

Perdi meu relógio, e meu tempo tentando encontrá-lo; encontrei, porém, uma estranha liberdade, tranquilidade de estar fora da circunferência dos ponteiros, sem aquele peso insignificante no meu braço a constantemente atar-me às rédeas do tempo. O tempo é o jeito que encontramos de entender a vida aqui neste mundo, um conceito demasiado abstrato para que demos a ele poder e permissão de nos aprisionar. A eternidade começa aqui, quando nos libertamos das restrições que os pequenos sucessivos instantes nos impõem, e vivemos o presente como dia final, fazendo do hoje o altar de nosso sacrifício. O seguimento de Jesus é a própria preparação. Deus chamou um pescador analfabeto para guiar sua Igreja; e ele, que fez? Lamentou-se por não estar preparado? Não! Levantou-se e seguiu o Mestre que acabara de conhecer, ocupou-se com o presente, não pôs os seus olhos no que ainda haveria de ser, não se fixou nas possibilidades vagas de um futuro absolutamente imprevisível.

Nunca pensei que um relógio perdido tivesse tanto a me dizer! E eis aí o que ele despertou em mim! Aquele relógio foi do meu pai, e eu o carregava comigo inconscientemente, talvez, como recordação, memorial, algum tipo de alívio para a saudade sempre presente. Porém, o valor do meu pai não estava no relógio, e algo mais eu poderia aprender com o objeto que ele me deixara, mas sua utilidade velava seu significado. Pode parecer estranho, mas ter um relógio sempre ao alcance dos olhos pode tornar-se um problema, uma prisão.

Eu sei, não são sentidos novos que me foram ensinados, mas significados antigos, sempre atuais, que facilmente permanecem escondidos por trás dos ponteiros. Não quero mais esconder as infiltrações nas paredes de minha casa pendurando calendários e relógios na frente delas. Metáfora estranha? Concordo. Mais estranha, porém, é a vida que se perde na tediosa repetição das horas.

domingo, 19 de abril de 2009

Olhares

Olhares, gestos discretos que têm o poder de nos penetrar a alma e arrancar de nós os significados que escondemos de nós mesmos. Há pessoas que são para nós como um filtro por onde passamos a vida, e em cujos olhos podemos ver refletida a verdade do que somos sem nos envergonharmos disso, por mais sujos que estejamos. Sinceridade, virtude que tanto estimo nos amigos, expressão característica do Amor que nos ensina que verdade e liberdade são dois conceitos que se entrelaçam até se tornarem inseparáveis, quase indistintos.

Olhares apressados ignoram os detalhes; amigos sabem demorar, sabem contemplar a vida para extrair dela o que lhe é essencial. Olhares assim são divinos, reflexos de Deus a iluminar-nos os passos, a encher-nos de coragem quando não vemos aonde vamos, onde pisamos. Amigos, pessoas que, apenas despontam em nossa lembrança, já fazem despertar o melhor que em nós descobriram, desenterraram, restauraram. Amigos têm o dom de revelar-nos as preciosidades que carregamos em nós por trás de nossos defeitos e limites, nos fazem perceber que é bom ser limitado, é bom precisar ter alguém por perto, mas, ao mesmo tempo, colocam o amor sempre acima das necessidades.

A todos os meus amigos quero deixar aqui minha sincera gratidão, pela presença tantas vezes silenciosa, mas que sempre produz muito fruto dentro de mim, que me fazem sorrir quando minhas razões parecem ter-se desfeito em minhas mãos. Amigos que me trazem felicidade com sua simples presença silenciosa, escondida ou com muitas palavras e sorrisos, porém, sempre sincera.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Segredos

Gosto dos símbolos, das metáforas, porque há realidades às quais palavras não podem remeter diretamente; eterna tentativa de descrever a vida, sublime canto de louvor ao inefável, silêncio e contemplação de realidades que os olhos não alcançam. Gosto das palavras que não dizem tudo, que deixam pistas para que meu coração encontre o caminho, que indicam direções para que o sentimento encontre o significado, não nas palavras, mas na própria realidade que elas indicam.

Segredos parcialmente revelados, que dão espaço ao esforço particular de ir ao encontro, de investigar, conhecer, experimentar. Mistérios, significados que nos penetram, que nos precedem em todo conhecimento, que nos significam à medida em que por nós são conhecidos, porém nunca totalmente compreendidos.

Vida que nasce da morte, mistério estranho, realidade que nosso curto entendimento não pode alcançar, que nosso coração não conhece pela experiência imediata e instantânea, mas por testemunhos vários de palavras escritas por outros como nós, outros que não nos podem mais falar, em cujos olhos não mais podemos ver os sorrisos que viram a Ressurreição; testemunhos distantes demais, dizem, mas prefiro considerá-los próximos. Ressurreição não é fato isolado, reservado aos que morrem, mas prefigurado, preparado, construído pelos que ainda vivem neste mundo.

Neste estado de constante morte, de permanente passagem, quero aprender do Cristo o que significa procurá-lo entre os vivos, não estar eu também entre os mortos. Quero fazer de meu caminho trabalho de construção da vida, esforço de remover a pedra que fecha o sepulcro, para que no fim possa atender à voz do Cristo que me chama: "Vem para fora!" (cf. Jo 11, 43)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Poetizando

A mística e a poesia sempre me pareceram íntimas. Uma é alma, a outra, revelação. Imagens, alegorias, metáforas, símbolos, moedas de um mesmo tesouro, revelações de um mesmo único mistério, o espírito. A tentativa de descrever sentimentos é uma preocupação constante nossa, e é às vezes frustrante o não saber, a falta de voz, a falta de palavras que digam o que queremos dizer. Poetizar é deixar que voem livres melodias às vezes silenciosas de palavras que nem sempre encontram destino certo, que partem sem saber aonde vão, ou como vão, com o desejo oculto de apenas serem o que são, sementes que ainda brotarão. É manhã que surge sem esforço, sol que nasce sem que o mandemos subir. Poesia é exercício, é escrever sem pretensão de saber, mas de apenas ser, é saber-se inculto, pela própria virtude mudo, com o simples desejo de comunicar. O que sei que não o saibam outros melhores que eu, que viveram desde antes que eu fosse, que disseram o que agora digo em palavras passadas que agora encontram eco em sentimentos de outro coração, que em mudas canções quer propagar o mesmo canto dos mesmos sentimentos? Experiências que permanecem, que prevalecem, verdades que mais falam de nós que as palavras com que tentamos exprimi-las, veladas, escondidas, resplandecentes atrás de véus, vultos luminosos que um dia verão a Luz.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Verdade

De quantas opiniões podemos extrair uma verdade? É paradoxal, mas parece que a quantidade de testemunhas vale mais do que a veracidade do que afirmam conhecer. De que valem as provas se temos opiniões? O verdadeiro tornou-se relativo, produto do delírio de uma autopiedade sempre crescente. As opiniões são sempre próprias, particulares de grupos ou indivíduos, indiscutíveis, e quando são acusadas de equívoco a acusação é sempre considerada equivocada. De que valem as provas se temos opiniões?

Alguns há que fazem tudo regidos por este princípio unilateral, frágil e infantil. As opiniões "indiscutíveis e sempre verdadeiras" são apenas a superfície desta egolatria que se exalta sobre os frágeis pilares das capacidades individuais. Eles esbanjam os frutos de seus esforços como querem, o quanto querem, num egoísmo que constrange todos os outros egoístas do mundo. Tem lugar aqui uma estranha competição, homens e mulheres ocupados em apiedarem-se de si mesmos, construindo imagens que disfarçam o próprio fracasso, escondendo a fraude que são em cenários de prosperidade e sucesso profissional. Que vença o mais egoísta! Isto gritam os instintos que se colocaram no lugar da liberdade de muitos.

É ser verdadeiro dizer-se cristão e ao mesmo tempo viver assim? "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus."(1) Agora pergunto: de que valem as opiniões, se temos fatos?


(1) Mt 19, 24

terça-feira, 10 de março de 2009

Meu nome

Quero que meu nome fale mais sobre mim. De minha família, quisera ser o último, o menor e menos visto, escondido atrás das palavras que meu Amor me permite dizer. Quisera ser sempre pequeno, mesmo nas aparências, nos olhares. Pequeno, assim desejo ser, permanecer oculto no lugar que me foi reservado desde que Deus me concebeu. Ser oculto nem sempre é fácil, é cruz, é sofrimento; não quero, no entanto, esconder-me em mim, quero somente que o que sou seja visto sem enfeites, seja ouvido sem louvores. Estou no mesmo caminho de todos os outros; que mérito tenho se tenho dado passos? Não é a obrigação de todos que caminham? Não quero ser amado e estimado pelo que faço, são bases pouco sólidas. Se me amam, amem-me por aquele que me Amou por primeiro, pelo meu Amor da Cruz.

Peço-te, divino crucificado, faças cair sobre minha cabeça o sangue vertente de Tuas santas chagas; seja eu envolvido por Tua vida que se esconde por detrás dos umbrais da morte. Que esta sublime visão de Teu sacrifício mova o meu coração ao mesmo aniquilamento e me faça querer o mesmo que quiseste para Ti, sofrimento, morte, ressurreição. Ensinaste-me mansidão, silêncio; cultiva em mim, amado Mestre, esta virtude que animou Teus gestos, e faça-me igualmente manso, como cordeiro que se deixa sacrificar. Ensinaste-me humildade, silêncio; cultiva em mim, divino Amante, o desejo de ser pequeno, de esconder-me, de diminuir-me a cada dia, para que Tu apareças em vez mim.
Espero ser atendido, e desejo que o seja tão logo quiseres. Assim seja.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Versos

Frases, sílabas, consonâncias
Movimento secreto e descoberto
Ventos, sentimentos passageiros
Sentido que muda a cada olhar
Olhares e pensamentos,
Descrevem meus versos,
Reflexos de uma alma que chora,
Mas canta feliz o destino de suas lágrimas,
Que regam o solo seco
De seu próprio coração.

Em minhas dúvidas sobrevive
A esperança de respostas.
No sono de meus versos não escritos
Permanece a alegria
De esperar nascer o dia
Em que todos cantarão,
A uma mesma melodia,
Louvores ao meu Cristo,
Ao Amado desta alma simples
Que em palavras se perde
Procurando presentes que o agradem
E sem encontrá-los entrega-se assim
Com seus rascunhos nas mãos
E lágrimas de gratidão
Pela misericórdia que a acolhe, enfim,
Inteira, porém incompleta, em construção.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

ReColhendo Vida

Passos, pegadas e rastros, quadro da vida pintado em passados, presentes. Mãos nossas que alcançam somente belezas que passam, olhares distraídos em curtos encantos.Olhos cansados fixos em luzes poucas, ávidos por artificiais desejos. Chegado o tempo da colheita, o que colheremos? Dos fragmentos de vida caídos no chão, quanto recolhemos? Falo de pedaços da vida partida dos corações sofridos, abandonados por corações que se julgam inteiros, que se destroem a si mais que aos que desprezam. Falo dos atos e gestos criados por nosso egoísmo e por nossa vaidade, fatos inúteis provocados por instintos irracionais e irrefletidos. Falo da descrença do coração nosso, ferido por si mesmo por medo de encontrar vitória, por ter medo e vergonha daqueles que desprezam o esforço de viver. Falo da falta que nos faz um sentido, uma simples razão para vivermos e sermos úteis, sem as distrações que nos fazem perder de vista nossa própria vida. Falo de jardins que carecem de cuidado, porque os jardineiros andam ocupados demais em caçar borboletas e fugir de abelhas. Chegará o tempo da colheita, mas quantos de nós terão frutos para colher? Quantos de nós terão frutos que se aproveitem, quantos de nós terão alimento quando forem ceifados nossos campos? Quantos de nós enfeitarão o altar de Deus com as flores de seus jardins? Quantos de nós quererão ter feito que que agora não querem fazer?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Outrora e Agora

Outro dia passei por uma experiência desagradável, dolorosa, ao presenciar uma espécie de "velório festivo" da moral de alguns a quem costumava chamar amigos. Mudanças de conduta que me surpreenderam e colocaram em mim uma pergunta intrigante: se mudaram tão rápido, será que antes eram, de fato, diferentes? Preciso confessar-lhes, a ausência deles não me faz falta alguma, o amor que lhes tenho não sobrevive de proximidades, mas sente-se traído cada vez que vejo o Amor que me faz amá-los sendo traído de maneira torpe, indecente, com incoerências sem tamanho. "Amigos" que encontraram outros lugares para armarem suas tendas, ao lado de alguns que outrora eram inimigos, a quem agora chamam "amigos", somente porque se interessam pelos mesmos assuntos, e de quem aprovam outras preferências, por mais irracionais que sejam. Meu rosto não escondia minha insatisfação, não podia olhar para eles sem ouvir o eco das palavras que eles mesmos costumavam dizer, palavras que reprovam a conduta que agora assumiram; sua incoerência me machuca, e minha alma chora ao vê-los afogarem-se no dilúvio de sua própria vaidade.

Espero que, ao lerem essas palavras, não se ofendam. Não os condeno, condeno o que fazem, o comportamento e os valores que assumiram, incompatíveis com aqueles que diziam guardar.
Apenas descrevi aqui os sentimentos de minha alma; prefiro deixar a advertência a cargo de alguém possuidor de uma autoridade mais elevada, com um espírito mais esclarecido que o meu.

"Eis pois o que digo e atesto no Senhor: não continueis a viver como vivem os pagãos, cuja inteligência os leva ao nada. O seu pensamento é presa das trevas e eles são estranhos à vida de Deus, por causa da ignorância que neles é produzida pelo endurecimento do seu coração. Em sua inconsciência, eles se abandonaram à devassidão, a ponto de se entregar a uma impureza desenfreada. Quanto a vós, não é assim que aprendestes de Cristo, se ao menos foi bem dele que ouvistes falar, se é ele que vos foi ensinado, de conformidade com a verdade que está em Jesus; renunciando à vossa existência passada, precisais despojar-vos do homem velho, que se corrompe sob o efeito das concupiscências enganosas; precisais ser renovados pela transformação espiritual de vossa inteligência e revestir o homem novo criado segundo Deus na justiça e na santidade que vem da verdade." (Ef 4, 17-24)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Passos

Hoje senti o mal muito perto, ouvia sua respiração ofegante, meio rouca, atrás de mim e o ruído de seus passos lentos e suaves, quase silenciosos. Com ruídos repentinos que produzia, sem que eu soubesse como, ele tentava me distrair e fazer-me desviar do caminho inicialmente escolhido. Confesso que algumas vezes meu coração se sentiu atraído pela furtiva tranqüilidade que inspiravam aqueles passos lentos e suaves, quase silenciosos.

Mas não cedi. Algumas vezes, subitamente atraído pelas distrações repentinas que me causavam aqueles curtos ruídos que o mal produzia, esquecia-me por alguns instantes que alguém caminhava comigo, e por pouco não voltei meu rosto para trás a fim de ver o rosto daqueles pés de passos lentos e suaves, quase silenciosos.

Havia uma forte luz à minha frente, na qual não podia fitar os olhos por muito tempo, ela me cegava; precisava piscar os olhos às avessas para conferir a direção em que andava, enquanto ouvia a voz daquele que me acompanhava num esforço contínuo para prestar atenção ao que Ele dizia e não me distrair com a respiração ofegante, meio rouca que me seguia, que sugeria que eu seguisse depois, que eu fizesse uma pausa para recuperar as forças; mero pretexto para me fazer tropeçar tão logo ouvisse sua voz e me esquecesse da voz daquele que me acompanhava. Queria ele que meus passos fossem como os dele, sem direção certa, lentos e suaves, quase silenciosos.

Percebi, então, que os passos daquele que me acompanhava não produziam ruído, e que os meus eram igualmente silenciosos enquanto, no mesmo ritmo, acompanhavam seus passos. Notei que os passos do mal eram ruidosos porque eram mancos, e, sempre que eu me distraía, meus passos produziam um ruído semelhante, e se tornavam igualmente lentos e suaves, quase silenciosos.

Aquele que me acompanhava, e acompanha, é bom, Ele não produz ruído que possa distrair-me e fazer-me esquecer de sua voz, que é o único som que produz. Este que me acompanha me fala ao ouvido com voz mansa e Sua bondade expressa em palavras e no calor de sua mão segurando a minha supera infinitamente o passageiro contentamento que sentiria na distração que o mal ainda me oferece. Escolhi manter o ritmo, a mesma direção, e, por mais que me incomodem esta respiração ofegante, meio rouca, e o som destes passos lentos e suaves, quase silenciosos, escolho acompanhar esses outros passos lentos e suaves, sempre silenciosos.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Entre dois

Um dia entre duas noites,
Vejo assim as luzes
Que descontinuam as trevas.

Não prendo meus olhos na dor,
Mas na flor ornada por ela.
Seus espinhos me fazem sofrer,
Mas dela, o gozo me manda sorrir.

Não prendo meus olhos na cor,
Nos fúnebres tons do outono,
Ou nas alegres cores da primavera,
Mas na vida pintada por eles.

Não quero fixar-me nos sons,
Na melodia do pássaro cantor,
No canto do riacho que muda em rio,
Mas no destino de todas as canções.

Uma noite entre dois dias,
Prefiro chamar assim,
Passagens de uma a outra alegria.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Comungar Deus

Colocar-se em comunhão com alguém significa ter iguais sentimentos, desejos, objetivos; quem recebe o Corpo e o Sangue de Deus na Sagrada Comunhão deveria, em virtude da presença real da pessoa de Jesus na sua totalidade divina e humana, colocar-se, ou antes, ser colocada em total comunhão com a divindade, não somente nos sentimentos, desejos e objetivos, mas também nos afetos, sonhos e planejamentos, e, sobretudo, no amor, porque o Santíssimo Corpo e o Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo são a fonte inesgotável do Amor Divino, de onde devemos beber para sabermos amar.

A razão pela qual tão poucos corações são modificados pela presença real de Cristo na Eucaristia é que poucos o recebem no Santíssimo Sacramento certos de que a realidade não é aquilo que os sentidos denunciam, mas sim o que Deus diz: "Isto é o meu Corpo; isto é o meu Sangue"(1). Estes cultivam uma fé que convém à sua razão, e, na verdade, não comungam, mas apenas comem e bebem a Carne e o Sangue de Cristo como se fossem pão e vinho, que no entendimento deles são apenas representações; comungam assim a própria condenação, recebendo o Santíssimo Corpo e o Preciosíssimo Sangue de Deus sem os discernir nas sagradas espécies do pão e do vinho. "Aquele que o come e o bebe sem discernir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação"(2).

Não podemos nos aproximar assim da Mesa Eucarística, por conveniência, com uma "fome" de sermos absolvidos de nossas culpas e de nossa impiedade pelos que nos veem "comungar", famintos de receber a aprovação daqueles que nos veem "guardar a fé e os bons costumes". Que belo disfarce para nossa infidelidade! O apóstolo adverte os que assim procedem dizendo: "quem tiver fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para a vossa condenação"(3). Aqueles que ainda duvidam da realidade do Sacramento, ouçam o que o próprio Cristo diz antes da instituição da Eucaristia: "Eu sou o pão vivo que desce do céu. Quem comer deste pão viverá para a eternidade. E o pão que eu darei é a minha carne para que o mundo tenha a vida"(4). Essas palavras corriam o risco de serem entendidas num sentido simbólico, mas os judeus as interpretaram literalmente, e Jesus, ao contrário do que, talvez, seus corações esperavam, reafirma a verdade que acabara de proclamar, não um símbolo, mas a própria realidade: "Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue, verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele"(5). Jesus toma o cuidado de dizer textualmente que Seu Corpo e Seu Sangue são verdadeira comida e verdadeira comida, não um símbolo qualquer que poderia ser criado por um homem qualquer. O Santíssimo Sacramento é um dom que o intelecto humano jamais seria capaz de conceber, nenhum homem ou mulher jamais ousaria pedir a Deus que Ele mesmo se fizesse comida e bebida; prova disto é que muitos ainda duvidam da realidade do Santíssimo Sacramento, porque limitam as experiências da fé àquilo que a razão é capaz de alcançar. "Felizes os que creram sem ter visto"(6).

Muitos não creem, também, porque a maioria dos que dizem crer no Santíssimo Sacramento apenas o recebem, não o comungam. Jesus disse: "Como o Pai, que é vivo, me enviou e eu vivo pelo pai, assim aquele que comer de mim viverá por mim"(7). Quem come um símbolo pode apenas despertar em si sentimentos de afeto e imaginações, mas quem comunga a Carne e o Sangue de Deus é nutrido por Cristo, come de Cristo, e vive por Cristo.

 

(1) Cf. Lc 22, 19-20

(2) I Cor 11, 29

(3) I Cor 11, 34

(4) Jo 6, 51

(5) Jo 6, 53-56

(6) Jo 20, 29

(7) Jo 6, 57

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Realizações

Depois deste tempo de vida como leigo consagrado, separado por Deus para não me perder Dele com a mesma facilidade de antes; depois de ter sido tomado pela mão e conduzido por caminhos antes desconhecidos, e que por isso mesmo me amedrontavam, levado a lugares em que minha alma pôde provar delícias do paraíso que nem sequer era capaz de desejar, porque minha imaginação não era capaz de alcançar realidades semelhantes; depois de tudo isso, ao ver pessoas que deveriam ser conduzidas de maneira semelhante pela vontade do mesmo Deus que me conserva aqui, uma dor aguda alcançou meu coração, e também o coração delas antes mesmo de poderem tocar naquilo que Deus lhes prometera entregar como prêmio pela obediência à Sua vontade. Outros, que não foram chamados ao mesmo caminho que nós, pais, parentes, amigos que se julgam no direito de determinar as escolhas dos outros, levantaram-se e se fizeram obstáculo à realização da vontade de Deus na vida daqueles que deviam partir para onde o Senhor os mandava ir. Fere-nos a alma sobretudo a atitude de alguns pais, cujo pensamento está de tal forma cristalizado num egoísmo disfarçado de amor que muito lhes custa a separação do que não mais depende de seus cuidados. Pais e mães que, frustrados em algum desejo passado, esperam a realização deles nos filhos. Em outras palavras, vêem na pessoa de seus filhos a continuidade de seu próprio ser, com todos os seus desejos e sonhos. É a atitude própria da primeira infância, o não saber diferenciar-se do outro, que aqui se apresenta de maneira semelhante, mas em pessoas de quem se espera um mínimo de maturidade afetiva que as faça capazes de deixar partir o que não lhes pertence mais. É como uma regra que se vem arraigando no pensamento comum, afirmando que os filhos devem ser a realização das frustrações de seus pais, e que qualquer comportamento que ponha em risco essa realização deve ser coibido de qualquer forma. Aqui a moral passa a ser negligenciada, quando tudo se torna justificável pelo desejo egoísta de alguns que não pensam na felicidade e realização dos filhos, mas de si mesmos neles.