quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Perdoai

“Quantas vezes hei de perdoar?”
(Mt 18, 21)

A pergunta esconde uma indisposição, já quer prever uma justificativa para perder a esperança e condenar, para sentir-se melhor do que alguém que supostamente errou e fez o mal. Mas quem conhece o coração do homem? Se permanecem ocultas para nós as razões alheias, porque temos pressa em emitir juízos e criar partidos e tribos? Não digo que todas as ações sejam justificáveis, digo apenas que não temos tudo ao alcance de nosso juízo, não temos acesso a todas as variáveis que levam alguém a tomar atitudes que julgamos erradas, ainda que tais atitudes sejam objetivamente más. Eis o princípio da misericórdia: o esvaziamento de si, o rebaixamento, a humildade, a humilhação voluntária, o “amar o próximo como a si mesmo” levado ao cúmulo pelo “amai-vos como eu vos amei” ordenado por Cristo. “Tende em vós os mesmos sentimentos que eram os de Cristo Jesus!” (Fl 2, 5)

Pergunto: de quem Cristo se aproximava, com quem ele tomava refeição? Ora, os que se chamam Cristãos não devem ser imitadores de Cristo, semelhantes ao seu mestre? Se o mandamento do perdão é verdadeiramente universal, por que a prática é tantas vezes limitada pelos nossos critérios de merecimento? O problema é que aquele “sereis como deuses” que precedeu o primeiro pecado do homem ainda ecoa em nossos corações e ainda tendemos a decidir o bem e o mal, pretendemos ser como deuses e nos colocamos no lugar de Deus, portadores de seus oráculos! A nós, cada vez que nos fazemos deuses, Deus mesmo diz: “É mentira o que esses ‘profetas’ anunciam em meu nome: não os enviei nem lhes dei ordem ou lhes falei. Visões espúrias, apinhações vãs, e fraudes que eles mesmos inventaram, eles vos propõem como oráculos; Eu não envio esses profetas, e, no entanto, eles se apressam; Eu não lhes falo e, no entanto, eles profetizam. Se estivessem no meu conselho, fariam ouvir ao povo minhas palavras; fariam com que voltassem de sua conduta malvada, de suas ações perversas.” (Jr 14, 14; 23, 21s)

A lei de Cristo é simples, o mandamento é um só: amai! A ordem não impõe critérios de merecimento, não faz restrições nem acepção de pessoas, mas refere-se a todos! “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, a fim de serdes verdadeiramente filhos do vosso Pai que está nos céus, pois ele faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e cair a chuva sobre os justos e os injustos.” (Mt 5, 44b-45). Lembremo-nos sempre de que quando a Salvação de Deus nos foi oferecida éramos maus como julgamos que são aqueles a quem nos apressamos em condenar. “Sim, quando ainda estávamos sem força, Cristo, no tempo determinado, morreu em prol dos ímpios.” (Rm 5, 6)

“Muitos se dizem bons,
mas um homem fiel,
quem o achará?”

(Pr 20, 6)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

A morte

Há pouco senti a morte, seu escuro silêncio parecia passear entre os homens, entre as árvores, como se parasse o vento, um peso que oprimia por escapar aos cálculos humanos. Senti como se visse seu rosto, seus olhos negros fixados nos meus, em meu coração, desejosa de ver-me içar minhas âncoras como aquele que eu vira partir. Seu manto negro a roçar os corpos dos vivos fazia-me estremecer, seu terror me atravessava e meus pensamentos, numa espiral de memórias e projetos, de sonhos e frustrações, perdia-se naquela contemplação fúnebre, entorpecida pela melancolia, porém transfigurada por uma estranha luz que irradiava do centro daquele turbilhão que me fazia vislumbrar uma pequena parte do futuro que nos espera a todos.

O manto negro da morte esconde uma esperança, sua aparência aterroriza, mas rompe fios, cordas e correntes que nos mantêm cativos de nós mesmos. Àquela visão, perguntava-me o que restaria de mim, o que eu levaria daqui. Restará uma lembrança que não durará muito e não levarei nada, só a mim mesmo, todo o resto ficará esquecido para sempre. A morte não tem memória, não tem passado, não tem história, só os vivos as têm e são elas que os fazem quem são. Como, então, escolher uma morte que não nos tire a vida, uma morte que ao nos encontrar nos cubra com o manto negro do esquecimento e revele a esperança outrora oculta aos nossos olhos? Como escolher a morte e alcançar pelo desejo o que alcançaremos por necessidade?

Aquele vislumbre das sombras abriu-me os olhos para ver a luz que essas mesmas sombras ocultavam, uma luz que não se irradiava sobre mim, mas dentro de mim, uma luz que me atraía e me impulsionava a desejar aquela morte, antecipá-la cobrindo com ela meu presente e minha história, esforçando-me por romper já os fios, cordas e correntes que me mantêm cativo de mim mesmo para que, quando eu vir a morte aproximar-se de mim, já não haja âncoras para içar e eu tenha deixado meu porto e meu destino esteja perto já antes de partir.