sexta-feira, 25 de março de 2016

Desceste

“Ah, se rompesses o céu e descesses!” (Is 63, 19b) Tu desceste e “nós vimos a tua glória” (cf. Jo 1, 14), glória velada sob a pobreza herdada de nós, herança que imita a glória primeva de que apareces agora despido: nosso ser à imagem de tua beleza criado privado dos bens que desprezamos outrora. Vemo-nos em ti refletidos agora e não se cala nossa consciência ferida. Tu desceste. E onde te procuramos? Ainda olhamos o céu desejando que desças, ainda buscamos-te glorioso e vestido de esplendor, desejamos saciar nossa esperança com uma visão, com algum sentimento capaz de fazer-nos crer mais facilmente e dissipar-nos as dúvidas, vencendo de súbito nossa morbidez que tanto nos custa admitir. Ainda olhamos o céu depois que desceste.

Em verdade desceste depois de elevado, tu sempre desces e te furtas às nossas buscas, tu te escondes para que te busquemos e te encontremos. Sobes para descer, elevas-te para mais te baixares! É-nos mais fácil imaginar um Deus glorioso e buscar-te assim, desejar manifestações de tua majestade, pedir que desças e rasgues o céu, que apareças glorioso e suscites em nós uma fé não mais vacilante, que nos convenças pelo que vemos e por sinais que imaginamos convir à tua grandeza. Mas não te rendes a nós! Embora rendido à nossa maldade te tenhas deixado levar ao patíbulo infame, rendido à nossa incredulidade te deixaste ferir e humilhar. Desceste e rasgaste o céu, rasgaste os véus, destruíste nossas pretensões de alcançar-te, expectativas humanas e rasas, desejos curtos e frágeis produtos de nossa invenção. Ah, rompeste o céu e desceste! Vemos diante de nós tua divina humanidade, tua humana divindade, nossa carne escondendo a grandeza de Deus e tua glória totalmente velada. Não se derreteram os montes, tampouco se ouviram sons de trombeta anunciando tua chegada. Vieste em silêncio e habitaste entre nós, escondido te mostraste o melhor dentre nós.

Se te víssemos glorioso parecería-nos mais fácil crer, mas te perderíamos. Era fácil desejar ver-te glorioso, mas não te rendes a nós. Nós nos perderíamos no que podíamos conceber. Se te mostrasses glorioso em teu corpo mortal ficaríamos cegos, perderíamo-nos na razoabilidade de um deus glorioso ou estarrecidos diante de um esplendor que nos esmaga. Por isso te escondes, para dilatares o alcance de nosso desejo, para que vejamos além do que vemos e busquemos teu coração.

Por que ainda te buscamos no alto? Eis que desceste e habitaste entre nós. Tu, imagem visível do Deus invisível, baixado à altura de nossos olhares e de nossa natureza ferida, deixas-te conhecer, deixas-te alcançar. Por que ainda buscar-te no alto se te temos tão próximo, se com um simples desejo te podemos tocar? Ah, rasgaste o céu e desceste, deixaste rasgar teu coração e nos resgataste, tu te deixaste elevar vestido de miséria em vez de glória e atraíste-nos a ti, Senhor do Céu e da Terra!

Eis-nos aqui, Senhor, prostrados diante de teu trono, beijando este madeiro lavado em teu sangue, pisando esta terra por teu sangue regada e em que foi semeado o grão de trigo que devia morrer. Eis-nos agora vivos, arrancados da morte por tua morte, porque desceste, porque te humilhaste e apareceste fraco, porque em ti nos apoiamos, ó divindade enfraquecida, e tu, glorioso, enfim te levantaste do sono da morte e nos reergueste contigo!

Ave crux, spes unica!

segunda-feira, 7 de março de 2016

Sangue e lágrimas

Passaram-se alguns meses desde que deixei este lugar, reinou o silêncio daquele último êxtase que deixei aqui, umas pobres palavras sobre meu Jesus. Hoje volto com vontade de ainda fazer silêncio e sem saber o que dizer que não seja esta minha confissão. Talvez eu faça pouco de minhas capacidades e minha intenção, aqui, seja mesclada de levantes de vaidade e soberba que me custa admitir. Seria absurdo, talvez, imaginar um escritor que escreva só para si, escondido e feito solitário por si mesmo. Mais possível, talvez, seja aquele que espera ser lido e compreendido, embora haja muitos que só querem ser lidos para serem exaltados por serem herméticos. Não sou este, movem-me a curiosidade e o olhar alheios, o desejo de dar-me, já não anonimamente, nessas palavras em que pretendo deixar algo apreciável, qual uma arte, que me valham alguns elogios. Mas em vez de mover-me qual impulso primeiro, fere-me este desejo, move-me, antes, a caridade de Cristo, que transforma minha maldade numa lança que me atravessa e faz-me sangrar, deixando cair aqui umas gotas de sangue e de lágrimas, um pouco de mim em minhas lutas, um pouco de minhas chagas e cicatrizes.

O medo e o silêncio, às vezes, tornam-se-me uma dolorosa evidência de minha vaidade e escondo-me para não expor minha vergonha, mas abrir os olhos e ver a luz exige o movimento contrário, o êxodo, o "quase" exílio cujo destino é apenas esperança e promessa, comunicação de alguém que tampouco viu o que ele mesmo promete, sonho e possivelmente uma ilusão. Escrever, para mim, é recordar-me de Abraão, Moisés, Josué e tantos outros, peregrinos que não somente deixaram terras e seguranças, mas deixaram a si mesmos e sobre seus ombros levavam multidões, calcando aos pés as próprias esperanças passadas e abraçando aquelas de que somente ouviram falar. É isto que quero fazer de minha literatura: sacrifício, êxodo, imitação de meu mestre.

Eis-me aqui, despido, acusando-me de umas poucas fragilidades que os menos íntimos desconhecem, desejando que essas letras sejam lágrimas a lavar-me os olhos e o coração. E já são lágrimas secas e negras, o meu olhar, já turvado, voz embargada e o silêncio que acompanha o choro já prevalece, por hora, enquanto caem as últimas gotas do que tenho a dizer. Quisera falar da vida e do mundo, algo que me parecesse útil, mas escolhi “sangrar e chorar” nesta prece silente que aqui faz-se capaz de outras vozes, ausente a minha.