sábado, 22 de agosto de 2020

És pó!

São Francisco em Meditação (1606) de Caravaggio

“No tempo da abundância, lembra-te do tempo da fome, no dia da riqueza, lembra-te da indigência e da miséria.”

(Eclo 18, 25)

Não reze para que seu sofrimento fique mais fácil, reze para que ele tenha sentido! A oração não é uma barganha, é uma relação, é um encontro entre duas pessoas que se conhecem e se amam e a Graça, muito mais do que um favor dado por Deus, é uma participação em Sua vida, é Ele mesmo dado a nós gratuitamente.

Não podemos nos iludir pensando que Deus providenciará uma solução mágica para essa pandemia. Não podemos tentar a Deus pensando que ele é obrigado a nos proteger se dizemos que temos fé nele. Não podemos dizer que tudo isso é castigo de Deus, que os homens são maus e que Deus nos está punindo. Não! Mas podemos fazer uma leitura sadia de tudo isso, podemos “entrar em nós mesmos” enquanto nos recolhemos mais do que em tempos “normais”. Esse vírus tem nos recordado o óbvio tantas vezes esquecido: nossa vida é frágil e curta, ninguém pode prologar a própria vida à força de preocupar-se com isso e o momento da morte é imprevisível!

Você pode pedir a Deus que não deixe você pegar essa doença e pode ser que Ele o faça. Pode ser também que você ou eu sejamos soberbos e a doença nos ensine a humildade. Deus pode interferir e impedir a doença e pode permiti-la, pode deixar a natureza seguir seu curso e eventualmente sermos infectados, ou não. E quem saberá dizer o que se passou? Um olhar de fé, no entanto, descobrirá sempre a mão oculta de Deus que sabe sempre tirar dos males um bem que jamais poderíamos imaginar! Em todo caso, podemos nos tornar pessoas melhores, mais atentos às necessidades dos outros porque conscientes das nossas, mais solidários, mais presentes na vida. No fim, a graça de Deus nos acompanha e em tudo teremos sido conduzidos por Sua Providência, porque “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28).

Se soubéssemos que morreríamos amanhã, como viveríamos até lá? Não reze para que sua vida fique mais fácil, reze para que ela tenha sentido!

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Olhar o Alto!

Eu quis ser perfeito… pretensão estúpida! Pensava que para ser perfeito bastaria “não ter defeitos”, ocultar minhas fraquezas e meus pecados até que desaparecessem, lutar contra eles construindo uma imagem, um ídolo, na verdade – pude compreender isso mais tarde – feito de mim mesmo e das opiniões alheias a meu respeito. Tentei ser perfeito. Alcançou-me, porém, um olhar que me via através das máscaras, que parecia discernir entre minhas virtudes verdadeiras e falsas e me falava, muito além das sílabas, do amor que minha pretensa perfeição escondia. Não posso explicar esse encontro senão pelo Amor de Cristo, que misteriosamente se serve de instrumentos humanos para chamar os seus e chamá-los a Si sem coagi-los, mas atraindo-os por meio daqueles laços com que nos deixamos prender (cf. Os 11, 4). Aquele olhar percebeu em mim uma luz que eu mesmo não percebia – eu a procurava como se ela devesse emanar de mim mesmo – e quis deixar-se iluminar por ela, era a luz de Cristo cujo resplendor parece mais evidente onde as trevas são mais densas (cf. Rm 5, 20).

Hoje não sei contar minha história sem me lembrar daquele encontro que ainda perdura no tempo, que ultrapassou os limites que eu considerava possíveis, que ainda penetra meu coração e me ajuda, como instrumento da graça Divina, a não fixar os olhos em mim nem em minhas incapacidades, mas tê-las nas mãos como o único dom que posso fazer ao Senhor, conservando em meu coração a prece incessante, como desejo sempre insatisfeito – meus gemidos inefáveis –, esta prece: “Recebe, Senhor, minha fraqueza e insuficiência, meus pecados e minhas infidelidades, é minha oferta e tudo que tenho de verdadeiramente meu.”

Não posso explicar o que se passa em meu interior, não há linguagem humana capaz de exprimir o que trago dentro de mim. Sei apenas que descobri – e tenho aprendido isso lentamente – na fraqueza um “lugar” em que Deus se faz tangível, é aí que Ele se deixa encontrar. E tenho aprendido que a perfeição, aquela que Cristo pede no Evangelho, consiste em amar, em ser amor, um amor que simplesmente é. Fitando aquele mesmo olhar que me alcançou, pude ver uma alma com suas feridas e medos, as marcas de suas lutas, suas fraquezas e aquela luz em seu íntimo que me alcançara e me alcança sempre. Não sei dizer quem de nós foi alcançado primeiro, só sei dizer que, olhando o chão, a terra de nossa condição, vislumbramos o Céu e já não sabemos olhar noutra direção. Olhamos juntos para a mesma luz e aqui embaixo vemos o alto, a vida do espírito, a vida melhor!