segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Glorifica o Teu nome

Fazer-se inteiramente dom, imitando nosso divino modelo em seu rebaixamento até a assunção de nossa miséria, somente é possível com a ajuda da graça. “Não é por causa de uma capacidade pessoal, que poderíamos atribuir a nós mesmos, é de Deus que vem a nossa capacidade” (2Cor 3, 5). Para mim, conhecendo minhas limitações e defeitos, pensar que pudesse encontrar em mim tal capacidade parecia absurdo, mas Deus não ma pediu nem pedirá, pede apenas que eu me submeta a Ele livremente. Contudo, teria valor uma obediência sem liberdade? Por isso obedeço, crendo que, quando o faço, escolho melhor do que se seguisse meus próprios critérios e preferências.

Hoje tenho minha vida totalmente nas mãos de Deus, de sua guia depende totalmente meu destino e meu próximo passo. Sei que Ele me pedirá muitos sacrifícios, renúncias ao habitual e costumeiro, para subir à barca e enfrentar águas agitadas até a outra margem. Mas que farei? Tomo para mim a oração de quem sigo os passos: “Agora a minha alma está perturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas é precisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome.” (Jo 12, 27)

"Meu coração está pronto, meu Deus, está pronto o meu coração." (Sl 107, 1)

domingo, 12 de junho de 2016

Amar-te

“Certa mulher, conhecida na cidade como pecadora, soube que Jesus estava à mesa, na casa do fariseu. Ela trouxe um frasco de alabastro com perfume, e, ficando por detrás, chorava aos pés de Jesus; com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, enxugava-os com os cabelos, cobria-os de beijos e os ungia com o perfume.” (Lc 7, 37-38)

Ao grande amor daquela mulher precedeu o perdão de Cristo e ao perdão de Cristo precedeu o grande amor daquela mulher. Amor e perdão se correspondem, implicam-se mutuamente. Ela não pediu perdão, mas arrependeu-se e amou muito, amou ao ponto de ultrapassar os limites da lei, tocar o Santo com suas mãos culpadas, banhar-lhe os pés com as lágrimas de sua culpa, ungindo-os com o perfume de seu passado. Quem poderá compreender o amor? Quem ousará dar-lhe medidas?

Dizia alguém que será triste chegar ao fim e ver terminada a vida sem naufrágios, ter vivido sempre à superfície. Ah, que espantosa verdade! O movimento do amor e do perdão, das sucessivas quedas redimidas, das lágrimas de arrependimento que se tornam dom e reconciliação, dos passos errantes que reencontram a direção quando encontram repouso: eis, aos pés de Deus, a Salvação feita história, maravilhosa transfiguração!

Ama, descobre Deus nestes fragmentos de teu frágil vaso despedaçado e o perfume, o encontro de dois amantes, tu e teu Deus, espargido no mundo: eis tua história, prostrada, rendida, imitando o madeiro que elevou da terra o Salvador!

Amar-te é meu desejo sempre
imperfeito, insatisfeito,
simples e grande, martírio
que assusta e me destrói e
me deixa em pedaços, tantos
pedaços aos pés de teu amor

Deixas-me aqui, vertidas
as lágrimas de minha prece,
derramado o perfume de meu
passado, o amor incompleto,
meu coração despedaçado
e meus pedaços todos aqui

No ar o perfume desta vida,
o perdão, o amor que nasceu
quando ouvi teu nome e vi
teu rosto ao longe, ouvi a voz
de teu amor no coração agora
despedaçado, minha gratidão

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O coração da Lei

Os Dez Mandamentos. À simples menção da regra alguns já se contorcem imaginando aquela série de proibições categóricas da lei de Deus. Pergunto: será que, de fato, são proibições? O Evangelho proposto pela Igreja para o dia de hoje (cf. Mt 5, 27-32) nos oferece alguma luz para compreendermos isso.

Jesus fala do adultério e transcende a transgressão “prática” da lei para chegar ao coração da mesma lei: o ato mal já começa no desejo de praticá-lo. Por que Jesus quer fazer-nos olhar além do ato? Porque Ele não está preocupado com o simples cumprimento da lei, isso seria muito pouco, mas está preocupado com a pessoa, comigo, com você, com cada um de nós. Porque você é importante Ele pede que não cometa adultério e todas as outras coisas já bem conhecidas.

Aqueles “nãos” talvez pareçam opressores, mas definem com clareza os limites de nossa liberdade que, naturalmente, será limitada em qualquer circunstância. A questão aqui é a nossa dignidade. Quando Deus diz ‘não cometerás adultério’ Ele está dizendo mais do que isso, muito mais do que isso. Poderíamos entender, em palavras simples, assim: ama, dá de ti ao outro sem querer algo em troca, oferece teu coração, livre, ao teu próximo. Não é preciso raciocinar muito para compreender a beleza do “coração da lei”, o amor, que deixa nossa vida muito mais simples, mais leve, mais livre. Consegue imaginar todo cristão amando assim? Parece mera utopia, mas seria possível se cada um se comprometesse com isso.

De fato, a lógica da caridade é bastante simples, ainda que por vezes seja árdua. Se o eu devesse ser o centro de tudo, seria impossível haver ordem e paz entre os homens e a ordem e a paz propostas pela caridade resumem-se nisto: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13, 34). É essa a liberdade do Evangelho, que exige de nós responsabilidade e compromisso e faz um duro desafio à nossa vontade: à Palavra ouvida na Igreja deve corresponder uma vida que a torne concreta, viva e visível. Termino com uma constatação: se não fosse verdadeira e se sua proposta fosse impossível, há muito essa Palavra seria apenas mais uma peça de museu.

sábado, 23 de abril de 2016

Segue-me

“Para onde eu vou, vós não podeis vir.” (Jo 13, 33c)

A essa afirmação de Jesus Pedro corresponde com uma ousadia imatura e irrefletida: darei a minha vida por ti (v. 37b). Essa ousadia é imediatamente corrigida por Jesus no anúncio da tríplice negação que se seguiria àquela ceia. Todos conhecemos o desenrolar da história: Jesus é preso e os discípulos se dispersam, Pedro nega Jesus três vezes, Jesus é julgado, flagelado e condenado à morte, morre depois de terríveis torturas, é sepultado e, ao terceiro dia de sua morte, ressuscita dos mortos. O que vem a seguir é impressionante. Sucedem-se diversas aparições do ressuscitado a alguns daqueles que o seguiam e, numa dessas aparições, conversando com Pedro, Jesus diz: Segue-me (cf. 21, 19).

Pedro talvez se tivesse esquecido, àquela altura, de sua impulsiva resposta que lhe valera uma repreensão em tom de advertência por parte de Jesus, mas esse mesmo Jesus, trazendo à memória de Pedro a tríplice negação e instando-o a uma fidelidade maior, conclui sua lição com o mesmo convite com que começara a formar aquele seu amigo: Segue-me. Mas esse ‘segue-me’ é aqui ressignificado, carregando agora todo o Mistério Pascal em sua matriz. Aqui, é como se Jesus dissesse: agora podes seguir-me, já me amas verdadeiramente. Outrora te amavas mais que a mim, por isso te disse que me seguirias mais tarde (cf. Jo 13, 36), mas agora amas a mim mais que a ti mesmo e mais que aos outros, por isso agora podes seguir-me, podes despojar-te de tua vida por mim despojando-te de tua vida por aqueles que contigo me amam e para que me amem os que ainda não me conhecem. Apascenta minhas ovelhas, vive minha vida, dá a tua vida por mim.

“‘Em verdade, em verdade, eu te digo, quando eras jovem, amarravas o teu cinto e ias para onde querias; quando ficares velho, estenderás as mãos e um outro atará o teu cinto e te conduzirá para onde quiseres’. Jesus falou assim para indicar com que morte Pedro devia glorificar a Deus; e, tendo assim falado, acrescentou: ‘Segue-me’.” (Jo 21, 18s)

sexta-feira, 25 de março de 2016

Desceste

“Ah, se rompesses o céu e descesses!” (Is 63, 19b) Tu desceste e “nós vimos a tua glória” (cf. Jo 1, 14), glória velada sob a pobreza herdada de nós, herança que imita a glória primeva de que apareces agora despido: nosso ser à imagem de tua beleza criado privado dos bens que desprezamos outrora. Vemo-nos em ti refletidos agora e não se cala nossa consciência ferida. Tu desceste. E onde te procuramos? Ainda olhamos o céu desejando que desças, ainda buscamos-te glorioso e vestido de esplendor, desejamos saciar nossa esperança com uma visão, com algum sentimento capaz de fazer-nos crer mais facilmente e dissipar-nos as dúvidas, vencendo de súbito nossa morbidez que tanto nos custa admitir. Ainda olhamos o céu depois que desceste.

Em verdade desceste depois de elevado, tu sempre desces e te furtas às nossas buscas, tu te escondes para que te busquemos e te encontremos. Sobes para descer, elevas-te para mais te baixares! É-nos mais fácil imaginar um Deus glorioso e buscar-te assim, desejar manifestações de tua majestade, pedir que desças e rasgues o céu, que apareças glorioso e suscites em nós uma fé não mais vacilante, que nos convenças pelo que vemos e por sinais que imaginamos convir à tua grandeza. Mas não te rendes a nós! Embora rendido à nossa maldade te tenhas deixado levar ao patíbulo infame, rendido à nossa incredulidade te deixaste ferir e humilhar. Desceste e rasgaste o céu, rasgaste os véus, destruíste nossas pretensões de alcançar-te, expectativas humanas e rasas, desejos curtos e frágeis produtos de nossa invenção. Ah, rompeste o céu e desceste! Vemos diante de nós tua divina humanidade, tua humana divindade, nossa carne escondendo a grandeza de Deus e tua glória totalmente velada. Não se derreteram os montes, tampouco se ouviram sons de trombeta anunciando tua chegada. Vieste em silêncio e habitaste entre nós, escondido te mostraste o melhor dentre nós.

Se te víssemos glorioso parecería-nos mais fácil crer, mas te perderíamos. Era fácil desejar ver-te glorioso, mas não te rendes a nós. Nós nos perderíamos no que podíamos conceber. Se te mostrasses glorioso em teu corpo mortal ficaríamos cegos, perderíamo-nos na razoabilidade de um deus glorioso ou estarrecidos diante de um esplendor que nos esmaga. Por isso te escondes, para dilatares o alcance de nosso desejo, para que vejamos além do que vemos e busquemos teu coração.

Por que ainda te buscamos no alto? Eis que desceste e habitaste entre nós. Tu, imagem visível do Deus invisível, baixado à altura de nossos olhares e de nossa natureza ferida, deixas-te conhecer, deixas-te alcançar. Por que ainda buscar-te no alto se te temos tão próximo, se com um simples desejo te podemos tocar? Ah, rasgaste o céu e desceste, deixaste rasgar teu coração e nos resgataste, tu te deixaste elevar vestido de miséria em vez de glória e atraíste-nos a ti, Senhor do Céu e da Terra!

Eis-nos aqui, Senhor, prostrados diante de teu trono, beijando este madeiro lavado em teu sangue, pisando esta terra por teu sangue regada e em que foi semeado o grão de trigo que devia morrer. Eis-nos agora vivos, arrancados da morte por tua morte, porque desceste, porque te humilhaste e apareceste fraco, porque em ti nos apoiamos, ó divindade enfraquecida, e tu, glorioso, enfim te levantaste do sono da morte e nos reergueste contigo!

Ave crux, spes unica!

segunda-feira, 7 de março de 2016

Sangue e lágrimas

Passaram-se alguns meses desde que deixei este lugar, reinou o silêncio daquele último êxtase que deixei aqui, umas pobres palavras sobre meu Jesus. Hoje volto com vontade de ainda fazer silêncio e sem saber o que dizer que não seja esta minha confissão. Talvez eu faça pouco de minhas capacidades e minha intenção, aqui, seja mesclada de levantes de vaidade e soberba que me custa admitir. Seria absurdo, talvez, imaginar um escritor que escreva só para si, escondido e feito solitário por si mesmo. Mais possível, talvez, seja aquele que espera ser lido e compreendido, embora haja muitos que só querem ser lidos para serem exaltados por serem herméticos. Não sou este, movem-me a curiosidade e o olhar alheios, o desejo de dar-me, já não anonimamente, nessas palavras em que pretendo deixar algo apreciável, qual uma arte, que me valham alguns elogios. Mas em vez de mover-me qual impulso primeiro, fere-me este desejo, move-me, antes, a caridade de Cristo, que transforma minha maldade numa lança que me atravessa e faz-me sangrar, deixando cair aqui umas gotas de sangue e de lágrimas, um pouco de mim em minhas lutas, um pouco de minhas chagas e cicatrizes.

O medo e o silêncio, às vezes, tornam-se-me uma dolorosa evidência de minha vaidade e escondo-me para não expor minha vergonha, mas abrir os olhos e ver a luz exige o movimento contrário, o êxodo, o "quase" exílio cujo destino é apenas esperança e promessa, comunicação de alguém que tampouco viu o que ele mesmo promete, sonho e possivelmente uma ilusão. Escrever, para mim, é recordar-me de Abraão, Moisés, Josué e tantos outros, peregrinos que não somente deixaram terras e seguranças, mas deixaram a si mesmos e sobre seus ombros levavam multidões, calcando aos pés as próprias esperanças passadas e abraçando aquelas de que somente ouviram falar. É isto que quero fazer de minha literatura: sacrifício, êxodo, imitação de meu mestre.

Eis-me aqui, despido, acusando-me de umas poucas fragilidades que os menos íntimos desconhecem, desejando que essas letras sejam lágrimas a lavar-me os olhos e o coração. E já são lágrimas secas e negras, o meu olhar, já turvado, voz embargada e o silêncio que acompanha o choro já prevalece, por hora, enquanto caem as últimas gotas do que tenho a dizer. Quisera falar da vida e do mundo, algo que me parecesse útil, mas escolhi “sangrar e chorar” nesta prece silente que aqui faz-se capaz de outras vozes, ausente a minha.