terça-feira, 29 de outubro de 2013

Se não por ti

Se não por ti, por quem?
Como sofrer em paz
Senão por ti?
Como ser paciente,
Senão por ti?
Fora de ti não há
Razão que baste
Nem alívio duradouro,
Não há gozo verdadeiro
Nem pena suportável
Se não por ti, por quem?
Por quem teria esta pena
Algum valor?
De tudo faço sacrifício,
Da pena e do gozo,
Em tuas mãos riquezas
De igual valor.
Abandono-me ao teu querer
E calo o meu, nada desejo,
Assim desejo tudo,
Tudo me serve,
Tudo me contenta,
Tudo será sacrifício
E eu serei santo
Quando de mim
Fizer meu último dom

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Ad Gentes

O que encontro aqui de mim? Estive aqui para perder partes de mim que pudessem ser achadas? O que posso encontrar de mim nestes lugares? Seria possível descobrir de mim mesmo alguma parte perdida aqui, onde jamais estive?

Pergunto, não espero resposta nem procuro nada que possa servir de sim à dúvida. Ansiedade é esforço inútil, uma onipotência ilusória frustrada em sua própria fantasia. Não quero novidades nem tampouco as rejeito, espero o que chegar, procuro o que encontrar, acomodo-me a tudo, mas não me deito, vivo, e vivo tudo o que puder. Para mim a vida é sempre novidade e esperança, caminho que faço seguindo passos de alguém que esteve aqui antes de mim e que me guia como estivesse ausente, como uma luz interior que me manda silenciar e seguir sem temer o passo próximo.

Temo apenas perder-me, esquecer de encontrar-me, de perceber as partes de mim que aqui não foram perdidas mas que me podem formar e reformar, restaurar o que fui e o que seria se outrora não me tivesse perdido, por minha culpa ou por minha condição. Encontro-me aqui, aqui estou, aqui sou, mas não por mim, não me procuraria aqui. De minha vontade encontro aqui apenas a submissão, a alegre obediência e sujeição à vida que escolhi, a serena liberdade de não querer nada e querer tudo, sereno sacrifício nunca penoso, nunca pesado. Saio de mim, êxtase consciente que sofro e que gozo, contento-me com tudo, tudo me serve, tudo me forma, tudo me consola.

Ouvi dizer que o amor é paciente e tudo suporta. Entendi que o amor se sacrifica, perde-se em favor do amado, dele tudo suporta, mesmo contrariado, é paciente e tudo suporta sem irar-se ou rebelar-se, faz de seu próprio desejo sacrifício e o faz silêncio, alegria, dom perene de si pela vida do amado.

Sigo um Cristo que não queria sofrer, um Cristo que, no entanto, escolheu o sofrimento para ter a salvação de seus amados. Sigo-o, por isso desejo ser como Ele, meu mestre, o Amor.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A tirania dos hipócritas

"O pardal lastima que o pavão tenha cauda tão pesada. (R. Tagore)

Os hipócritas são um tipo interessante, no mínimo. Admira-me o esforço que fazem para parecerem virtuosos diante daqueles que querem que os vejam assim. Chega a causar espanto o empenho desse tipo em construir para si máscaras e personagens que caibam aonde forem: na igreja, um, no bar, outro e na família, ainda mais um.

É um feito admirável o que conseguem. Merecem uma medalha, talvez. Uma homenagem, um ode, uma apologia ou uma página de pessoa pública no Facebook (disso gostariam, provavelmente). Sua fama os precede. Seus rostos sorridentes, suas mãos sempre levantadas em protesto contra os males que assolam o povo, sua presença sempre antecipada em ações comunitárias beneficentes, sua presença sempre notável em trabalhos pastorais e caritativos. Quantas fotos belas para serem publicadas nas redes sociais! Quanta virtude para ser ostentada gratuitamente! Nos seus lábios nunca há uma palavra ofensiva, seus discursos são sempre politicamente corretos, polidos e aceitáveis, desejáveis, floridos e enfeitados com uma oratória invejável.

Mas, os hipócritas são um tipo interessante, volto a dizer. Raramente vivem sozinhos, andam geralmente em bandos, podem ser os amigos santos que andam sempre juntos na Igreja. É como se procurassem desesperadamente por cúmplices e álibis, por outros de si com quem possam ter algum alívio de seu esforço heroico para sustentarem de pé o santo oco.

Curiosos, espantosamente hábeis na arte do pavoneio, são no entanto bastante numerosos, embora nem sempre sejam identificados facilmente: é preciso fazer parte de seu grupo, ser confundido por eles com um deles ou ser cobiçado para ser mais um de seus membros exóticos. Gostam de trocar experiências, de rir-se dos enganados e de gloriar-se dos louvores que recebem pelas virtudes que demonstram. É um clube de narcisos e pavões. Vivem contentes por suas realizações, os ideais esculpidos e ostentados como troféus de sua magnanimidade. Alguns são excessivamente críticos e arvoram-se como juízes severos, como guardiães irrepreensíveis da verdade e da ordem. Outros são mais discretos, mostram-se indulgentes e compassivos, são sempre afáveis e demonstram generosa misericórdia. Nesses dois tipos dividem-se os hipócritas, grupos rivais que dividem e fragilizam seus tronos e púlpitos, dos quais cuidam, cooperativamente, com zelo admirável.

Frequentadores de festas beneficentes e festejos religiosos, encontram ali um momento de alívio para seus esforço, reúne-se o bando e retiram as fantasias e adornos, todos cúmplices do mesmo delito, testemunhas cujo silêncio compra a própria impunidade. Estão ali e em celebrações religiosas, quando ficam sempre à vista de todos, heróis do zelo e da dedicação, da caridade e do compromisso com a Igreja, com Deus e com o padre.