quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Chove

Chove. Eu e minha casa de papel desfeitos, fugidos, caçando abrigo contra a água e o preconceito, olhares mal feitos, defeito em epidemia. Aonde vou, eu sem minha casa, sem minha vida, vida em desabrigo? Morro entre desconhecidos, invisível, temido, esquecido. Onde vivo, onde morro, na rua, nas praças, não tenho minha casa, não mais, o papelão molhado se perdeu perdendo-me também, infortúnio previsível que não pude evitar e fugia de mim quem poderia, mundo ameaçado por minha pobreza, vida em desabrigo, em desalento.

O que posso fazer? São todos melhores do que eu os que vivem em casas que não caem, os que se cobrem no frio, os que de dentro de seus carros me veem como se eu fosse paisagem e meu desalento um acidente, acaso inevitável que preferem ignorar.

Fico em silêncio enquanto tento salvar umas folhas de papelão molhado na esperança de reconstruir meu abrigo. Sei que a nova casa só sobreviverá até a próxima chuva e se repetirá minha sina enquanto eu viver, enquanto viver só quem não me vê. Não tenho culpa de viver assim e a ninguém tampouco culpo, faço silêncio enquanto tento sobreviver. Não tenho muito tempo.

domingo, 16 de setembro de 2012

Racionalidades


Não me importa ser acreditado
Incauto por crer no que creem
Irracional, infértil razão
Que não soube crer na razão
Que só soube ver o que vê
E só crê no que sabe conhecer

Creem-me irracional, retardado
Por razão já superada, vencida
Pela razão prática, superficial
Do experimento, da constatação
Da ciência rasa das conclusões
Do raciocínio, proto-racionalidade

Creem-me ingênuo, resignado
A padrões ultrapassados, moralidade
Há muito deixada no passado
Regras que serviam outros tempos
Já não servem à nossa modernidade
Conhecer-me-ia reinventando-me

Mas não me importa a condenação
Rápida de quem só vê a superfície
Importa-me a verdade que creio
A razão alargada pela fé-esperança
Que tenho em minha natureza
E numa outra que assumiu a minha

Tornou-se divina a humanidade
Ao tornar-se humana a divindade
Fazendo-me crer no que poderia
Ser mera imagem da imaginação
Tomando para si a minha condição
Tornando a morte em redenção

Creio-me agraciado, felicitado
Por mérito que não é meu
Ao ver a lei que dantes oprimia
Tornar-se apoio à frágil natureza
Ferida pela própria altivez
Que contraria a própria natureza

Creio-me vencido por uma razão
Mais racional que a minha, pura
Conhecedora de profundidades
Que minha racionalidade não pode
Nem poderia alcançar sozinha
Assim conheço-me como sou conhecido

Conhece-me a divina razão, o amor
O divino motivo de crer e viver
Como vivo e creio, assim creio
Que não pode ser irracional a razão
Que se faz humilde e crê em Deus
Que a tudo supera e conhece melhor

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O que vi


Não sei o que vi
Não vi o que sei, se senti
Se pensei o que desejei
A verdade que logo passou
Desapareceu quanto tentei
Tocá-la, alcançá-la
Qual miragem enganou-me
A visão, ilusão que criei
Do deleite tão necessário
Esperado, riqueza que então
Me saciaria, para sempre,
Eu pensava, acreditei
Enganei a mim mesmo
Minha razão eu traí
Inventando mentiras
Inventadas verdades
Que me saciariam
Mal que não vi
Do qual suspeitei
E ignorei o perigo
O risco que fingi ser
Pequeno, desprezível
Risco que não era
Nem seria jamais
Mera possibilidade
Era realidade, destino
Certo, previsível
Que não previ
Razão que traí
Não pensei, só senti
E deixei-me sentir
Deixei-me tocar
Pelo mal que toquei
Me perdi ao perder
O bem que troquei
Pelo bem que inventei
Mal disfarçado de mim