sábado, 8 de agosto de 2015

A misericórdia

A misericórdia é a virtude daqueles que se deixam ferir e despedaçar por suas próprias fragilidades, daqueles que tem o coração rasgado, aberto para acolher, para olhar o outro e amar. A misericórdia é dom de Deus, fruto da caridade, que é o próprio Senhor, é sinal inequívoco da ação de Deus. Deus é misericordioso por natureza, seu amor infinito e incondicional só pode ser entendido assim, sobretudo quando contemplamos, inevitavelmente deslumbrados, a maneira como ele se desdobra em carinho para conosco, a generosidade com que nos cumula de graças, a facilidade com que nos perdoa e a ternura com que o faz, suas carícias e suas epifanias várias e incontáveis que nos cercam.

Deus, amando, entra no coração e faz entrar no Dele, sonda as profundezas do coração da criatura, conhece suas razões, seus motivos conscientes e inconscientes, suas fraquezas, suas intenções mais secretas e ama, somente ama, sem limitar o amor a impressões superficiais. Nós, ao contrário, começamos pela superfície, "amamos" o que nos é agradável e favorável. Se chegamos a um nível mais profundo, somos capazes de tolerar algumas falhas menores naqueles que nos são mais próximos, talvez cheguemos a tolerar algumas maiores, somos capazes de acolher algum pecador público que, em geral, a sociedade rejeita. Se, porém, chegarmos a uma profundidade ainda maior do amor seremos capazes de dar a vida por esses mesmos em quem descobrimos os piores defeitos, ultrapassaremos o nível da tolerância e chegaremos ao dom, à doação livre e total de nós mesmos a todos, de maneira a alcançar precisamente aqueles pontos mais frágeis que antes poderiam fazer-nos rejeitá-los.

A misericórdia rasga-nos o coração. Um coração misericordioso é sempre aberto, ferido como é de chaga incurável que o faz derramar continuamente seu sangue, num dom permanente que aprendeu de Cristo a fazer de si mesmo a todos, sem fazer distinção de pessoas. A misericórdia é característica do coração puro, necessário para ver a Deus, para reconhecê-lo, para ver com os olhos de Cristo. Um coração misericordioso não tem um olhar condicionado por opiniões próprias, condicionado à própria experiência, não faz juízos enviesados pelos próprios sentimentos e emoções. É próprio do falso misericordioso e pretensamente justo jugar o outro a partir dos próprios sentimentos, projetando no outro o que ele teria feito em seu lugar ao invés de acolhê-lo sem pretender imaginar suas razões.

A misericórdia rasga-nos o coração, faz-nos perder a vida em favor de outra vida, faz-nos olhar para nós mesmos sem pretender-nos melhores que os outros. O misericordioso já ofereceu a Deus seu coração e não quer tomá-lo de volta, deu-o a Deus para que Ele o use, para que seja uma sede para aquele Amor que, antes de tudo, o amou gratuitamente e continua a amá-lo. O misericordioso não nega a ninguém o que ele mesmo desmerecidamente recebeu: todo o amor de Deus.