quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Ano novo

Penso que as festividades de ano novo servem apenas para nos lembrar que o tempo passa. Observe, é a ocasião em que mais se repete a expressão "Nossa, como o tempo passa rápido!". Eu me pergunto, como sempre faço nesse tempo, o quê, exatamente, é causa de alegria na troca de calendário. Troca-se a imagem no topo da folhinha, o 8 mudará para 9, dezembro para janeiro, 31 para 1, seguindo o mesmo movimento repetido de todos os dias (não digo anos porque a diferença é meramente conceitual). Preste atenção, oportunidades de mudanças não marcam um encontro único para o 31 de dezembro, mas estão presentes em todos os dias de todos os anos, de igual forma, o que muda é a nossa disposição, que na contagem regressiva para o dito "ano novo" grita à nossa consciência para que a deixemos sair do quarto escuro onde a trancamos durante os dias que se passaram desde o último 31 de dezembro.

Os festejos são um detalhe interessante nessa transição. São interessantes porque a motivação dessa "alegria" caberia numa mudança de 23 para 24 de agosto, por exemplo (quem puder, explique-me a diferença, se eu estiver errado). Interessante também é a importância que tantas pessoas dão aos fogos de artifício que iluminam o céu dessa noite, que prendem nossa atenção que, penso eu, deveria fixar-se em coisas mais duradouras. Não digo que seja reprovável dedicar alguns minutos para assistir esse, digamos, espetáculo, mas que tanta avidez em tal movimento me parece denotar uma certa disposição em fixar-se em realidades que não podem permanecer. Sejamos coerentes nesse fim de ano, e que as promessas de mudança não sejam como esses fogos que nos iluminam por um curto momento e desaparecem com tanta facilidade, e que são, como seu nome diz, artificiais.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Vidas

Há vidas nessa vida que me permitem o divino convívio apenas com suas presenças simples e silenciosas, de poucos encontros, ou muitos, de olhares que dizem mais do que poderia pronunciar, abraços que as despedem de mim e deixam uma saudade que não me retira a tranqüilidade que Deus conserva em meu peito, mas a ausência que permanece no lugar dos encontros que se foram faz crescer em mim uma felicidade ímpar, uma alegria que não sei traduzir senão por lágrimas, por ter podido experimentar o Amor divino num carinho humano.
Há vidas que olham para mim como a um pai, outras como a um irmão, outras como a um amigo, mas em todos esses olhares que repousam sobre mim, em tantos contextos, me admira ver a misericórdia de Deus que me quer sempre por perto, porque a felicidade que vejo neles, que me dizem o tempo todo que amam o Deus que vêem em mim, me obriga a guardar intacta minha fidelidade. É evidente, muitas vezes caio, mas minha infidelidade me obriga também a acreditar que Deus me ama infinitamente mais do que acreditava antes das quedas, porque depois delas Ele continua sorrindo pra mim e me amando naqueles mesmos olhares humanos que quis se aproximassem dessa pobre alma que não sabe dizer muito sobre Ele.
É verdade, não sei dizer muito, mas sei dizer que se Ele quer ser amigo, irmão ou pai de alguém por meio de mim não posso querer outra coisa, porque essa mesma vontade divina é a que ainda me conserva aqui onde estou, e que desejo conserve até que se torne impossível separar-me outra vez desse Amor, na eternidade.
 

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Quero somente o Senhor

É noite em minha alma, apenas pequenas estrelas iluminam meu céu e a lua se escondeu na escuridão. É tempo de olhares simples para mim mesmo, olhares sinceros que nada vêem além de minha própria alma, porque onde não há luz, nada se vê. No mais profundo de mim as trevas não puderam penetrar, porque aí Deus habita em silêncio, aí a Luz eterna a tudo ilumina, e é essa luz que sigo em minhas noites sem luar que ilumine outros caminhos. Quero chegar aí, onde habita meu Senhor, porque em Seu divino silêncio nenhum ruído me poderá perturbar. Encontrando-o dentro de mim, no lugar onde nada mais pode chegar, como poderia eu perder-me Dele? Se O possuo nada mais me atrai na terra.(1) No Senhor encontro tudo quando minha alma necessita, e uma felicidade imensa que jamais seria capaz de desejar. Em Deus está o verdadeiro descanso, o verdadeiro repouso, que me é concedido mesmo em meio aos trabalhos, em meio aos sofrimentos, e que converterá meus pesares em causa de júbilo. Uma só coisa peço ao Senhor, e é só isto que eu desejo, provar de Sua eterna graça e ser por Ela de tal modo transformado, que nada reste em mim dos desejos inúteis que não alimentam em mim Seu divino Amor.

(1) Sl 72. 25

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A Escravidão da Verdade

A temática de hoje talvez assuste o leitor. O que devo dizer aqui hoje quer impor-me uma necessidade de omissão vestida de prudência, mas Deus me diz o exato contrário; um profeta nunca se arrisca, porque sabe quem é o Deus que o protege. Em outras palavras, a denúncia do erro, que faz parte da profecia, pode atrair ameaças, e mesmo a morte, mas não é arriscar a vida, porque o Deus que protege o profeta é vencedor contra a conseqüência mais grave da incompreensão dos ouvintes, e por isso o martírio é tão glorioso. Eis o que o Senhor me ordena: "Prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, ameaça, exorta com toda paciência e empenho de instruir. Clama em alta voz, sem constrangimento; faze soar a tua voz como a corneta. Denuncia a meu povo suas faltas, e à casa de Jacó seus pecados" (II Tm 4, 2; Is 58, 1).
O escravo é aquele que é submetido a uma regra rígida de comportamento, que lhe impõe explicitamente o que deve e o que não deve fazer, com punições à desobediência e nenhuma recompensa à obediência. Assim é a "liberdade" dos nossos dias. A sujeição à permissividade moral (imoral?) é como uma autonomia de consciência, enquanto seus adeptos se reduzem a relações mútuas superficiais, baseadas quase que exclusivamente, mas sempre essencialmente, em realidades que não caracterizam o "homem sábio", e assim as relações humanas são descaracterizadas e lhe são retiradas do fundamento características essencialmente humanas, que ultrapassam a superficialidade do prazer.
Observe os relacionamentos de hoje, quase sempre descompromissados, nascidos de uma experiência de puro prazer, sem levar em consideração, pelo menos inicialmente, o ser, mas apenas o que pode ser oferecido materialmente aos "interessados". Não quero aqui gerar discussões a respeito da dignidade das pessoas que vivem assim, mas meu objetivo aqui é anterior a isso. Hoje a maioria dos relacionamentos nascem no prazer, tomado isoladamente e como objetivo principal. Seria coerente fazer uma construção sobre um terreno temporariamente estável? Evidentemente não, como vimos em Santa Catarina, onde cerca de 60% das áreas atingidas pelos desastres recentes não são mais habitáveis. É certo que aquelas pessoas, se soubessem que tudo isso aconteceria, não teriam construído ali. Fundamentar relacionamentos sobre o prazer é a mesma coisa. Prazeres nem sempre podem ser satisfeitos, e essa possibilidade não é permanente. Relacionamentos são assim, e mesmo que se desenvolva um sentido de mútua doação e serviço, são árvores com raízes rasas. Um exemplo simples far-nos-á entender. "Raízes rasas representam melhor regiões com estação seca curta, e raízes profundas favorecem a modelagem de regiões com estação seca mais pronunciada."* A metáfora é simples. Prazeres "materiais" diminuem com o tempo até que cessem, e cessará também, naturalmente, tudo o que no prazer se fundamenta.
Quis intitular este texto de "Escravidão da Verdade" exatamente porque essa liberalidade é falsa e retira a dignidade do ser humano que vive assim; a verdade, porém, "aprisiona" homens e mulheres nos limites próprios da condição humana, sem excessos ou excessões. Não há prêmio para quem obedece às regras de ser gente, mas as punições são severas: as naturais conseqüências de uma luta contra a própria natureza, isto é, a auto destruição física e moral.

* Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Refinamento da Representação de Raízes no Modelo de Biosfera SiB2 em Área de Floresta na Amazônia

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Ser simples

Aquilo para o qual costumava fazer planos foi retirado de meu alcance. Parecem ter sido tomados de mim os sonhos que ocupavam meus pensamentos, e que me moviam, não sei se para frente ou para trás. Hoje apenas um sonho me ocupa, me preocupa, me incomoda e me consola. Aprendi assim que ser simples não é deixar de fazer coisas complicadas, mas fixar o propósito daquilo que sou em um único, simples, objetivo: Deus. Querer uma coisa só, eis o que desejo fazer, só isso. Por algum tempo, por preocupar-me com muitas coisas, em nenhuma delas eu me empenhava o bastante, não por falta de vontade, mas porque uma vontade dividida não pode ser inteira em todas as partes (um princípio matemático óbvio demais para precisar de justificativas).
Quero somente ser de Deus, e trazer em mim Seu amor, e assim ser de todos, a fim de ganhar o maior número possível (cf. 1Cor 9, 19). Meus passos são solitários, acompanhados apenas por outros que perseguem o mesmo destino. A solidão acompanhou muitos santos, que souberam, assim, apegar-se a Deus de maneira mais plena, sem divisões, com uma vontade única, como única é a vontade de Deus, como único é Deus.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Misericórdia

Quero deixar aqui um pedido de perdão àqueles que partiram levando consigo minha incompreensão. A escassez de detalhes que pudessem esclarecer toda a situação me fazia querer condenar aqueles que anunciaram ao meu lado o mesmo único Deus e Senhor de todos os homens, mas em meu íntimo a voz do Senhor me pedia uma atitude simples, porém essencial: misericórdia. Se condeno aqueles de quem Deus se compadece sou injusto, comigo mesmo e com eles também, porque Deus, que possui um juízo mais apurado que o meu, nos perdoou a todos. Sejamos coerentes e tenhamos a coragem de dizer que o que muitas vezes nos difere daqueles que desistiram é que eles tiveram uma coragem que nós não tivemos (ainda?). Santo Afonso de Ligório sugere que rezemos assim ao ver alguém cometendo algum erro: obrigado Senhor, porque se não me ajudasse Vossa graça eu teria feito pior. Aprendamos com isso. Os erros dos outros não podem ser motivos para que os condenemos, mas, antes, indícios de possíveis erros nossos, ou, talvez, indicação de erros atuais que ainda não nos demos a oportunidade de perceber. Os erros dos outros devem aparecer para nós como pedidos de socorro de corações que, como os nossos, não sabem acertar sozinhos. A decepção com o outro nos abre os olhos para enxergarmos se amamos de verdade o Cristo que ele anunciou. E quem é esse Cristo senão esse que dá uma atenção especial e preferencial àqueles que nos acostumamos a classificar como malditos, desgraçados, inúteis, incapazes? Se dizemos tantas vezes Jesus, manso e humilde de coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso, tenhamos, então, a coragem de aceitar esse coração que Deus nos quer entregar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Caminhando

Andar é um ato de fé porque confiamos que o pé que fora erguido para dar o passo tocará novamente o solo. Alguém pode dizer, e com razão, que olhamos com freqüência para o chão a fim de sabermos se é seguro ou não pisar neste ou naquele ponto; no entanto, enquanto olhamos para baixo confiamos no movimento em que nos colocamos, e seguimos sem considerar a possibilidade de surgirem obstáculos que não podem ser vistos enquanto olhamos para o chão. O contrário também é verdadeiro. É verdade também que o tempo que gastamos em cada um desses olhares é suficiente para construirmos para nosso consciente uma certeza a respeito das condições do caminho em que andamos, porém essas condições não são sempre constantes e nem sempre percebemos tudo o que seria necessário para garantir, de fato, nossa segurança. Você já deve ter passado pela experiência de não perceber um desnível no chão, como um degrau, por exemplo, e "pisar em falso", reagindo como se fosse cair em um buraco. Prova disso também é que às vezes tropeçamos, ou nos colocamos em rota de colisão com outros andantes que também não perceberam tudo em seu caminho. Olhares rápidos não percebem detalhes. Se não houvesse a fé naquilo que supomos (que assumimos como verdadeiro sem experimentações e constatações) jamais teríamos coragem de colocar um pé para fora de casa.

Há, no entanto, uma diferença fundamental entre essa fé "empírica", natural, e aquela que recebemos de Deus em nosso batismo. A primeira é acreditar a partir de "constatações precipitadas", ou sem fundamento teórico, e a segunda ultrapassa tudo isso, é a confiança em uma autoridade superior que conhece de fato o que nossa inteligência apenas supõe ou ignora.

Podemos comparar aqueles olhares com que percebemos o que está à nossa frente enquanto andamos com as revelações que Deus nos faz, e nos fez, em Sua Palavra. Deus às vezes nos permite ver a luz que há em nosso destino, o Céu, para que não percamos o rumo da caminhada. Olhamos para frente e vemos a luz do Céu, e então voltamos a olhar para o chão, que é a nossa humanidade, onde estamos, onde atualmente pisamos. Olhamos algumas vezes para o Céu, e não percebemos tudo, mas cresce em nós a fé que nos faz confiar que podemos continuar caminhando, sem riscos de quedas ou desvios. Caímos e nos desviamos muitas vezes, mas, diz São João Crisóstomo, não desejamos tanto o perdão dos nossos pecados quanto Deus deseja perdoar-nos.

"De fato, é em ti que o nosso bem vive e não desfalace, pois tu mesmo és o bem; e não receamos mais encontrar o lugar de onde caímos, pois em nossa ausência não se destrói a nossa casa, que é a tua eternidade." (S. Agostinho. Confissões, IV, 31)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Sentimentos, superfícies

Nossa fé deveria fazer-nos desejar ir além do que permitem nossas capacidades. Absurdo isso? Não. A verdade do homem foi fragmentada ao longo da história, fomos, aos poucos, perdendo espaço dentro de nós mesmos, nos encolhendo em nossas impossibilidades, e o que nos era possível, deixamos pela estrada, e os animais comeram as migalhas de pão que indicavam o caminho de volta. Procuramos constantemente sentimentos e sentidos novos que tomem o lugar daquilo que escolhemos perder, mas nunca ficamos satisfeitos, como um copo cheio de pedras, que fica mais pesado e parece estar todo cheio, mas na verdade está cheio de espaços vazios também. E para quê serve um copo cheio de pedras?
 
Hoje resolvi descrever a vida de um jeito um pouco alegórico, moldado de metáforas, para falar desta pequena riqueza que dizemos possuir em nós, e da qual a todo tempo, um pouco sem querer, fugimos por não compreendê-la, a fé. Quando pecamos pela primeira vez, a fé pareceu ter-nos sido retirada, e hoje devemos nos esforçar para guardá-la dentro de nós. Ela, porém, é contrária ao que nos tornamos sem ela.
 
O mundo quer depender de constatações, de provas concretas, fatos, de tudo que pode ser conhecido a partir de experimentações e descrições. Acreditamos na vida, mas não vemos a vida; o que vemos, na verdade, é a manifestação da vida, mas não a vida em si mesma. Alguns crêem em Deus a partir de Suas incontáveis manifestações. Aí nasce a fé, e a partir daí ela começa a crescer e desenvolver-se, mas o que apreendemos por meio de nossos sentidos não deve limitá-la. Se nossa fé se limita àquilo que nos é manifesto aos sentidos, ela não se desenvolve, e se fragiliza à medida que vai contando dias no calendário. É a subnutrição do espírito. As realidades espirituais fazem parte de  nossas vidas, somos corpo e espírito, mas muitas vezes negamos essa realidade por não alcançarmos mais com facilidade isto de que voluntariamente nos afastamos. Falta-nos coragem para aceitarmos essa verdade, por que ela nos obrigará a abandonarmos os muitos vícios que nascem, exatamente, dessa "ignorância", e que são alimentados pelo orgulho que nos faz desejar e acreditar estarmos sempre certos em nossas vagas opiniões sobre aquilo que, na verdade, nem sequer nos dispomos a conhecer.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Reflexão

Vivo em um mundo de respostas prontas, nem sempre certas, de fatos feitos, repetidos. Aqui o diferente é estranho, absurdo, subjetivo, relativo, moralista. A vida exige atitudes ousadas de quem não deseja, e não espera, ser apenas mais um, mas deseja ser, apenas; não ser um entre tantos, entre muitos, como muitos, quase todos, que rejeitam os últimos poucos que querem identidade própria. Ser igual a todos não exige esforço, é a atitude inútil de nada fazer, e não melhorar, permanecer, até que outros o levem, aonde querem, sem querer impedir que façam o que a maioria permite.
Aqui há regras que mudam segundo o desejo de cumpri-las, instinto institucionalizado, instituído como mestre da razão. Racional? Responda você.
Aqui há comportamentos previsíveis, prostituição de valores socializada, profanação da individualidade e da identidade, distorção de verdades e transfiguração de mentiras em aparentes verdades, alimento para a razão irracional daqueles muitos. Vivo no meio desses tantos que não sabem mais o que são, que pensam ser homens, mulheres, meninos, meninas que vivem cativos dos próprios desejos, reféns dos próprios medos, dos conceitos falsos formados de si mesmos, que sobrevivem às custas do acaso.
Pertence aos poucos modificar os muitos e trazê-los à luz, indicar-lhes o único caminho que devem seguir se desejam chegar à felicidade que têm buscado nos lugares errados. Cabe aos poucos mostrar-lhes onde está a alegria que esperam, a paz que procuram, a paz de que precisam, o consolo de que carecem. É tarefa de santos mostrar-lhes Deus que nos quer todos juntos, diferentes unidos no mesmo caminho, e que entregará a todos no final a felicidade que buscam. E assim já não seremos muitos e poucos, mas seremos, então, todos, um só coração.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Sou eu

O trabalho penoso de me descobrir artista passou pelo reconhecimento de fragilidades cuja origem eu desconhecia, e por isso as rejeitava. Foi observando e ouvindo outros como eu que pude enxergar-me assim como sou, sem véus. Observei e ouvi esses que carregam o fardo da arte, sem, no entanto, reconhecer-me entre eles, e assim purifiquei o meu olhar e pude ver em mim os detalhes que antes desprezava, e que me tornavam o que realmente sou. Descobri em mim uma arte diferente, palavras que saem de mim sem que eu as retire, letras que encontro sem que eu as procure, elas, na verdade, me encontram, me encantam, e me fazem transformá-las na expressão de meu próprio ser. Descobri-me capaz de tocar realidades que antes me pareciam inatingíveis, distantes demais, e encontrei em mim uma liberdade da qual antes era apenas mais um admirador. Em saber-me artista encontrei a possibilidade que Deus me deu de manifestar sua beleza ao mundo através de minha própria vida, e aprendi que fazer arte é pôr uma realidade em molduras, delimitar em moldes definidos o que ela é, sem porém reter tudo, mas apenas parte de sua essência, a fim de que o que a arte mostra seja amado na beleza da representação. Descobri assim que evangelizar não era tão difícil como imaginava, bastava apenas ser eu, artista de Deus, e arte Dele também, e tornar-me, a partir do que Ele me deu, um pouco Dele aqui também.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Um Rei oculto

Entre os homens caminha um homem desconhecido de muitos, anônimo, desfigurado e transfigurado, invisível e oculto em imagens que não atraem nossos olhares. Os homens não querem vê-Lo porque roubam para si a glória que é Dele, e se envergonham de ver diante de si a verdadeira realeza que imaginam possuir. Os homens pensam ser ricos, quando na verdade sua pobreza é maior do que a daquele que nada possui. Aquele que vive abaixo de todos, vive acima de tudo, e os que pensam possuir tudo, perderão tudo, e no fim nada serão.
Entre os homens caminha um rei coroado de espinhos, glorificado com uma realeza de dores, exaltado numa cruz, seu trono. Enquanto os homens se gloriam de serem ricos, ele é glorificado na pobreza; no extremo do mundo se colocou, como o último dos homens e o primeiro deles também, o menor já nascido e o maior de todos, modelo perfeito que todos devem seguir.
Entre os homens caminha um Deus feito pobre, humilhado e glorificado aparecendo pequeno, glorioso e glorificado quando desprezado pelos homens, elevado sobre todos quando colocado abaixo de todos, um Deus feito pequeno para que Dele se aproximassem os menores que Ele, para que Ele, erguendo-se, os exaltasse em Sua glória. (1)

(1) cf. Santo Agostinho. Confissões VII, 18

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Cuidas de mim

Em minha alma Tua luz dissipou as trevas e me fez viver em trevas, sem poder olhar e ver-Te. Porém, estava seguro ali, onde me asseguravas que nenhum inimigo me tocaria, mas tive medo. Eu quis pedir ajuda e proteção aos que passavam por ali, mas não me deixaste abandonar Teus cuidados, e me permitiste guardar para mim aquele medo que me era tão caro e que não tinha coragem de abandonar. Amava-o mais que a Ti, que me amas com um amor maior que o meu amor.

Naquela quietude, Tua voz silenciosa me ensinava todas as coisas, mas meu coração distraído prendeu-se à inquietação daquele medo que queria arrancar-me de Teus braços, mas não permitiste que eu fosse levado para longe de Ti, e cuidaste de mim mesmo quando Te esqueci.

Sozinho, porém, não estava. Quiseste cuidar de mim com mãos humanas, e me ensinar com uma voz que me fosse familiar. Nesses olhos de carne com que me olhas, Tu me mostras minha vida e me fazes ver-me sem olhar para mim mesmo. Nesses ouvidos com que me ouves acolhes minha vida, minha verdade, me acolhes inteiro em Tua misericórdia, quando me abraças e dizes ao meu ouvido: "Senti saudades Tuas".

Assim me cativaste, me aprosionaste pelo desejo de ser novamente abraçado por Ti. Sentirei sempre saudades Tuas, enquanto não me concedes estar eternamente em Teus braços, sob Teus cuidados, Deus do meu amor.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Em criação

Estamos em processo de criação. A cada dia em que abrimos os olhos e contemplamos as novas luzes da nova manhã, a criação faz eco do eterno ressoar da voz do Pai que diz: Faça-se a luz! Nós ainda não estamos prontos. Em construção seguimos e somos ao mesmo tempo desconstruídos, desfeitos e refeitos. Escondidos, às vezes, mas somos por todos os lados vistos pelos mesmos olhos que primeiro nos viram, e que primeiro nos amaram sem nunca terem podido não nos ver. O Verbo Eterno de Deus que primeiro falou ecoa no mundo falando do Pai e ensina a viver, simplesmente, sem querer outra coisa além de ser de Deus. Às vezes caímos, e nos levantamos sustentados pelas mesmas mãos que nos moldaram e que também agora nos moldam e refazem, segundo o modelo perfeito daquele que nasceu como nós mas não se corrompeu. E o Eterno Espírito ainda paira sobre as águas, sobre os rios e mares, e nos faz desejar sermos todos rios fluindo com mesmo destino, o mesmo oceano de onde todos partimos, nosso Deus que nos fez e faz, para quando estivermos feitos com ele no fim descansarmos.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Caminho

Sofrimento estranho este que tenho experimentado. Minha natureza a cada dia se revolta mais contra meu espírito e me sinto sufocado, às vezes paralisado. Tudo o que o Espírito pede de mim exige que eu maltrate o corpo, para que nada do que eu possa desejar do que é transitório ocupe meus afetos. É trabalho contínuo de aprender a desprezar o que a vida me ensinou a amar; é a construção de uma personalidade nova, diferente, pura. A caminhada do espírito descreve passos diferentes do que minha razão espera. Caminhar é muitas vezes previsível, sabe-se em que direção segue a estrada, mas nos caminhos espirituais tudo é invisível, tudo é trevas, como diz S. João da Cruz, porque a luz que nos guia nos cega de tão clara. A fé aqui é o único guia, e o que se ouve de Deus é a única orientação segura para levar esta caminhada ao seu destino último. "Tato e vista falham, bem como o sabor, só por meu ouvido tem a fé vigor" (1). Só por minha fé serei guiado por aqui, Deus será meu único guia, me falando pela voz de tantos e de poucos. Basta-me o que me dá o meu Senhor, o que peço e o que não peço. Basta-me o que me nega o meu Senhor, porque quando me priva do que quero me dá o que preciso. Basta-me o meu Senhor.
Caminho nas trevas, sim, mas meus passos são envolvidos por uma luz que jamais se apagará. A escuridão deste caminho está em mim apenas, que agora estou cego, mas minha esperança me motiva a caminhar perseverante e confiante naquele que me leva por esses caminhos, porque o fim que me espera é uma infinita alegria que supera todas as dores que terei sofrido aqui, uma felicidade que enfim me fará enxergar, e poderei ver diante de mim, claramente e sem véus, a beleza eterna do Deus que tanto amo, a quem tanto quero, a quem me assemelho quando sofro neste caminho.
As trevas, para que se tornem luz, devem morrer. Eu, para que seja santo, como Deus deseja, também devo morrer. Minha vida deve ser martírio, martírio silencioso de meus desejos e afetos, para que tudo o que sou, tenho e posso repouse em Deus, em quem me encontro, em quem tenho tudo, em quem posso tudo (2). Se morro não morro, por que a morte me faz viver. "Vem morte, tão escondida, que eu não te sinta chegar, para que o prazer de morrer não me dê novamente a vida." (3)
Sou caminhante, estrangeiro em rota de retorno, peregrino que segue viagem sem querer parar. Sou um andarilho cego e me deixo levar pela única voz que ouço diante de mim, que me leva aonde deseja. Nessa voz confio, é a voz do meu Jesus, a quem amo e a quem quero amar eternamente. "E tão alta vida espero que morro porque não morro, vivo sem viver em mim." (4)

(1) S. Tomás de Aquino. Adoro-te
(2) cf. Fl 4, 13
(3) Sta. Teresa D'Ávila
(4) Sta. Teresa D'Ávila. Vivo sem viver em mim

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Sem comentários

Acredito que esta tenha sido, durante algum tempo, minha resposta de toda hora, mesmo que às vezes silenciosa. Às vezes, por ignorância, outras por covardia, outras ainda para me dar a oportunidade de ouvir.
Calar pode ser uma virtude, mas pode também se tornar um grande inimigo. Digo isto por experiência própria. A palavra sugere participação, supõe uma certa preocupação com os fatos e circunstâncias de cada dia. É a reação. Porém, o comentário, protagonista destas minhas palavras de hoje, exige percepção, crítica, pensamento. Comentar não é re-descrever, reproduzir, repetir, mas analisar, repensar a realidade. No entanto, comentários não são sempre bem vindos a todos os ouvidos, e às vezes nem mesmo a quem os pronunciou.
Silenciando dou-me a oportunidade de ouvir. É preparação. Diria que esse silêncio é a melhor reação, por que respostas rápidas demais tendem ao erro. Respostas que demoram costumam ensinar mais, a quem responde e a quem é respondido.
Quero fixar a atenção nestes últimos, já que escrevendo aqui torno-me alvo de comentários. O silêncio dos ouvintes (ou leitores, se preferirem) é, por vezes, uma voz estridente que grita que todo o discurso é vão, já que ninguém o escuta. É a primeira tentação de quem fala e escreve, mas aí se apresenta a oportunidade de ser livre no que se faz, especialmente quando se fala de Deus. Não há obrigatoriedade de que seja o semeador quem realizará a colheita. Tudo é vaidade, e esperar o reconhecimento dos homens o é por excelência. O silêncio é a morada do orgulho que não quer correr o risco de ser julgado e condenado pelas palavras que seriam ditas. Por outro lado, quem fala é atacado pela vaidade, que o faz desejar o reconhecimento de quem o escuta. Dois inimigos que não podem ser vencidos pela fuga, mas apenas pela humildade, guarda e guia de quem verdadeiramente ama a Deus sobre todas as coisas.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Espelhos

Muitas vezes mudamos o foco de nossos olhos e o colocamos no nosso passado, tentando encontrar as coisas ruins que ficaram por lá. Isso cria em nós um sentimento que nos impede de tentar fazer melhor no tempo que virá. Prendemos os nossos olhares na impossibilidade. O tempo da derrota não permanece, não perdura para sempre. Não se pode olhar para a própria vida como quem se olha no espelho. Quando se olha no espelho você se vê no centro do reflexo, e todo o resto que ali é refletido está à sua volta, mas o que mais se nota, além de você mesmo, é o que está atrás de você. O mundo visto no espelho é um mundo muito pequeno, restrito, cheio de impossibilidades. Olhar o mundo pelo espelho é olhar para si mesmo o tempo todo, e olhar para trás o tempo todo. Só é possível modificar o cenário do reflexo se sairmos da frente do espelho; ou esperar que alguém modifique a paisagem por nós, mas aí corremos o risco de esperar para sempre, fugindo à nossa responsabilidade, nos "infantilizariamos", esperando que os outros façam por nós, que os outros "se salvem em nosso lugar".

Quem nesta vida gosta de guardar retratos das tragédias passadas? Guardamos, sim, retratos dos momentos felizes, e dos ruins trazemos recordações, lições, cicatrizes. Vida cristã é isso, olhar voltado para a possibilidade, lembranças boas guardadas em fotografias, memórias passadas nos ensinando a não cometer os mesmos erros, a não tomar caminhos errados, olhos fixos no Cristo que nos ensina que o sofrimento é passagem, processo de santificação e configuração a Ele mesmo. As alegrias nos recordam que vale a pena continuar, cada dor nos prepara, nos fortalece para a próxima que virá.

Abra a janela na sua casa e olhe o mundo por ela, e então verá a diferença entre olhar a vida pelo espelho e olhá-la pela janela de casa. Veja a vida que está à sua frente. Comece olhando pela janela, depois pela porta de sua casa; você verá os caminhos que partem dali, que levam a lugares onde você nunca pisou, e isso lhe dará coragem para sair e andar por eles, pela força do desejo de tornar concreto o que é possível, tornar a possibilidade em realidade.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Palavras

Procurava as palavras certas para dizer-Te o que minha alma sentia. Meu coração estava agitado e meus pensamentos andavam por muitos lugares, sonhando encontrar as palavras que melhor servissem àquele meu desejo. As letras pareciam ter medo de mim, e quando conseguia alcançá-las logo as perdia de novo. Por fim me decidi ir falar contigo mesmo sem ter o que dizer, com a esperança de que compreendesses o mal que me fizeram aquelas palavras ao deixar-me sem ter o que dizer-Te. Bati à Tua porta, ansioso por dizer-Te nada, apenas para achar-me logo livre do incômodo de não ter palavras para falar a Ti. Quando abriste a porta de Tua casa me olhaste sorrindo, como se eu fosse a visita mais esperada daquele dia. Ao nos sentarmos para conversar me perguntaste como eu estava, ao que respondi, como de costume, que estava bem. O silêncio que se seguiu pareceu eterno; Tu me olhavas sorrindo, e eu, envergonhado, abaixava a cabeça. Quando a noite já caía perguntaste-me se havia mais alguma coisa que quisesse dizer-Te. Respondi sem palavras e me levantei com a intenção de voltar à minha casa, mas não me deixaste sair, dizendo que querias que eu ficasse ali contigo. Confesso que aquelas tuas palavras me assustaram, mas não hesitei em consentir. Logo que disse sim aquela inquietação por não saber o que dizer-Te deu lugar a um contentamento discreto e silencioso de estar ali contigo. Alegrei-me tanto por ver-Te tão feliz com minha resposta que não me importava mais com as palavras que me escaparam, mas me deleitava naquela paz silenciosa na Tua presença. Teu olhar de amor me acompanhava e senti-me seguro ali contigo. E então, de repente, quando não esperava mais do que um grande silêncio e já não me preocupava mais se falavas ou não, mas me satisfazia apenas Tua presença, revelaste-me, com palavras simples e humildes, os maiores desejos de teu Espírito. Falaste-me da grande alegria que sentias por ter-me ali contigo, e Tuas doces palavras revelaram uma saudade que ali se dissolvia e um contentamento tão grande que parecia ser o sentido de Tua vida. Tuas palavras cheias de amor encheram meu coração de felicidade, e puseste em meu rosto o Teu sorriso.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Eu Novo Ardor

Os dias se apertam ao meu redor, tempo que encolhe e me recolhe, final que me espera, me espreita, me atormenta e me consola. Os dias passam, noites caem e se levantam trazendo dias que vêm e vão, passam sem jamais ficar. Instantes que se sucedem nessa acelerada rotina que encharca esses mesmos dias que nada podem reter. Águas mansas e revoltas, rios, lagos, mares, oceanos, tantas águas que me levam ao mesmo lugar, mesmo parado, manso, às vezes acelerado, carregado pela correnteza. É a vida que me leva, me carrega e me sobrecarrega de alegrias e dores. As alegrias me servem, me consolam, me refrescam, me saciam. As dores me moldam, me formam, me movem, me motivam, me fazem servir, e levar alegria aos outros, alegria que, como a mim, os serve, consola, refresca e sacia. Assim minha vida segue, ao lado de almas que Deus quis fossem como a minha, inquietas, esperançosas, diferentes do mundo inteiro, que querem ver no outro o que de bom vêem em si, o que de bom de Deus receberam. Nossas almas, poucas almas, desejam o céu para os outros, e assim também para nós. Somos almas caminhantes, peregrinas, missionárias, a Deus somente consagradas, de um desejo só, simples: que todos e todo homem se salve, e assim se faça na terra a vontade de Deus como é feita no Céu. A nós Deus deu almas novas, zelosas por aquilo que Ele nos deu a todos. A nós Deus deu almas que sofrem e amam, tão somente, para fazer chegar Sua voz onde não a ouvem, Sua face, onde não a vêem, sua vida, onde só há morte. A nós Deus fez trabalhadores, servos com Ele sofredores, para despertar os que dormem, corrigir os que erram, levantar os caídos, reeducar quem desaprendeu amar. A nós Deus marcou com seu selo, Seu nome, e nos confiou sua missão, dela nos fez continuadores. Somos uma família de santos eleitos, pecadores e frágeis humanos, que a Deus se entregaram para levá-Lo ao mundo, para que todos conheçam a verdade e sejam verdadeiramente livres. Nosso nome, Novo Ardor, novo zelo pela casa de Deus, novo zelo que nos consome, que nos molda e que nos move. Que Deus nos faça fiéis ao nome que nos foi dado, ao carisma que nos identifica, e assim nos faça zelosos cumpridores de suas santas Palavras. Assim seja.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Ide a Jesus

Quando foi que te vimos preso e não te fomos visitar? Isto perguntarão muitos no dia final. E o que responderá o Senhor? Ele mesmo antecipa a resposta: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer (Mt 25, 45).

Ora, de uma outra forma encontra-se Jesus preso nesta terra. É o divino Redentor prisioneiro no Santíssimo Sacramento. A Eucaristia é Ele mesmo, feito nosso alimento para nos unir a Ele. De fato, no Santíssimo Sacramento Cristo continua seu aniquilamento total, realizado desde sua encarnação no seio virginal de Maria Santíssima. No estado Sacramental, Cristo encontra-se totalmente aprisionado, e submetido à vontade humana, que o pode transportar para onde quiser; a transformação do pão e do vinho em seu Corpo e Sangue acontece pelas palavras de um homem. Ao pronunciar as palavras da Consagração, o sacerdote de Deus, falando na pessoa de Cristo, torna presente sobre o altar o santo sacrifício da Cruz, e é somente mediante a proclamação daquelas santas palavras que isto ocorre. Cristo submete-se ao querer humano, e faz-se dele prisioneiro. Assim, aprisionado, permanece Cristo no tabernáculo, e dali só sai quando retirado por mãos humanas. Ali permanece Jesus até que alguém dali o retire. Ali permanece Jesus, esperando pacientemente que alguma alma o vá visitar.

No tabernáculo Cristo espera pelos homens, e a todos quantos dele se esquecerem dirá aquela mesma palavra: estive preso e não viestes me visitar. Dirá isto para que saibam que o destino mal que os espera foi escolhido por eles mesmos quando escolheram não visitar o Senhor que os esperava no Santíssimo Sacramento.

Quem, pois, verdadeiramente ama o Senhor, haverá de fazer-lhe freqüentes visitas no Santíssimo Sacramento. O Senhor que espera no tabernáculo é o mesmo que morreu na cruz. Se teus sentidos dizem que o Senhor não está ali presente, em seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, crê, pois, no que te diz a própria verdade. Se o próprio Deus diz ser verdadeiramente Ele mesmo, como podes acreditar no que te dizem teus sentidos? Não é Deus maior que teus sentidos? Não é Ele capaz de realizar este milagre? Tua razão diz ser impossível a água tornar-se vinho, e no entanto isto se realizou pelo poder de Jesus. Não pode Ele também transformar o pão em seu Corpo e o vinho em seu Sangue? Quem tem ouvidos, ouça (Mt 11, 15).

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Vieste a mim

Andava sozinho por este caminho escuro quando passaste por mim.
Perguntei-me o que fazia ali alguém tão rico como tu,
num lugar tão sujo e afastado do lugar onde vives.
De repente chamaste meu nome.
Eu nem sequer imaginava que o soubesses.
Um sentimento de estranheza me invadiu e roubou-me a razão,
e com a alegria que o acompanhou senti-me livre
para dar vazão ao desejo de conhecer-te,
a ti que sempre pareceu-me tão distante.

Voltei-me para trás e te vi olhando para mim,
parado à porta de minha casa.
Parecia que me chamavas para perto de si,
mesmo sem nenhum gesto ou palavra.
Chamado que escolhi responder, e fui ao teu encontro,
imaginando o que querias de mim,
os motivos que te levariam a querer estar perto de alguém tão miserável
que não fizera nada que pudesse merecer tão grande benefício.

Ao aproximar-me de ti me abraçaste. Momento inefável!
Um plebeu abraçado pelo rei mais poderoso de todos.
E qual não foi minha surpresa quando me perguntaste
se podias adentrar minha casa,
casa simples, a mais pobre da cidade.
Apressado, corri até a porta para abri-la para ti.
Como poderia contrariar o desejo do meu rei,
que havia se humilhado tanto para estar perto de um miserável súdito seu?

Ao entrares em minha casa sorriste como jamais vi alguém sorrir,
e parecias gozar da maior alegria que já tiveste.
Eu já não queria mais entender teus motivos, e decidi permanecer ali,
contemplando-te e aproveitando ao máximo a alegria daquele instante,
enquanto não me fosse retirada tua feliz presença.
Mas a maior surpresa ainda estava por vir.

De súbito, chamaste meu nome, uma segunda vez,
e me perguntaste se podias morar ali comigo.
Eu não sabia mais o que pensar.
Mais uma vez não poderia contrariar teu desejo, e consenti.
Até aquele instante eu não havia dito nenhuma palavra,
respondia apenas com meus gestos e olhares,
mas então decidi falar-te, com toda a alegria contida em meu silêncio,
e toda a sinceridade de quem é beneficiado sem merecimento.

"Podes morar comigo quanto tempo quiseres,
mas não queiras ser apenas hóspede,
mas sejas tu o meu anfitrião em minha casa, que agora é tua".

No momento pensei ter sido ousado demais,
mas minha alegria não havia chegado ainda ao limite.
Olhando-me com este teu olhar amoroso, disseste sim ao meu pedido,
e fizeste em minha casa morada permanente.
Perguntei-me se realmente haveria algum limite para a felicidade que sentia,
e, parecendo ter ouvido minha pergunta,
disseste que minha felicidade jamais deixaria de aumentar,
porquanto jamais eu poderia esgotar o que tinhas para me dar.