segunda-feira, 16 de junho de 2008

Caminho

Sofrimento estranho este que tenho experimentado. Minha natureza a cada dia se revolta mais contra meu espírito e me sinto sufocado, às vezes paralisado. Tudo o que o Espírito pede de mim exige que eu maltrate o corpo, para que nada do que eu possa desejar do que é transitório ocupe meus afetos. É trabalho contínuo de aprender a desprezar o que a vida me ensinou a amar; é a construção de uma personalidade nova, diferente, pura. A caminhada do espírito descreve passos diferentes do que minha razão espera. Caminhar é muitas vezes previsível, sabe-se em que direção segue a estrada, mas nos caminhos espirituais tudo é invisível, tudo é trevas, como diz S. João da Cruz, porque a luz que nos guia nos cega de tão clara. A fé aqui é o único guia, e o que se ouve de Deus é a única orientação segura para levar esta caminhada ao seu destino último. "Tato e vista falham, bem como o sabor, só por meu ouvido tem a fé vigor" (1). Só por minha fé serei guiado por aqui, Deus será meu único guia, me falando pela voz de tantos e de poucos. Basta-me o que me dá o meu Senhor, o que peço e o que não peço. Basta-me o que me nega o meu Senhor, porque quando me priva do que quero me dá o que preciso. Basta-me o meu Senhor.
Caminho nas trevas, sim, mas meus passos são envolvidos por uma luz que jamais se apagará. A escuridão deste caminho está em mim apenas, que agora estou cego, mas minha esperança me motiva a caminhar perseverante e confiante naquele que me leva por esses caminhos, porque o fim que me espera é uma infinita alegria que supera todas as dores que terei sofrido aqui, uma felicidade que enfim me fará enxergar, e poderei ver diante de mim, claramente e sem véus, a beleza eterna do Deus que tanto amo, a quem tanto quero, a quem me assemelho quando sofro neste caminho.
As trevas, para que se tornem luz, devem morrer. Eu, para que seja santo, como Deus deseja, também devo morrer. Minha vida deve ser martírio, martírio silencioso de meus desejos e afetos, para que tudo o que sou, tenho e posso repouse em Deus, em quem me encontro, em quem tenho tudo, em quem posso tudo (2). Se morro não morro, por que a morte me faz viver. "Vem morte, tão escondida, que eu não te sinta chegar, para que o prazer de morrer não me dê novamente a vida." (3)
Sou caminhante, estrangeiro em rota de retorno, peregrino que segue viagem sem querer parar. Sou um andarilho cego e me deixo levar pela única voz que ouço diante de mim, que me leva aonde deseja. Nessa voz confio, é a voz do meu Jesus, a quem amo e a quem quero amar eternamente. "E tão alta vida espero que morro porque não morro, vivo sem viver em mim." (4)

(1) S. Tomás de Aquino. Adoro-te
(2) cf. Fl 4, 13
(3) Sta. Teresa D'Ávila
(4) Sta. Teresa D'Ávila. Vivo sem viver em mim

Nenhum comentário:

Postar um comentário