terça-feira, 6 de novembro de 2018

Feliz

“Feliz de quem tomar parte no banquete do reino de Deus” (Lc 14, 15b). Feliz de quem tem um coração de pobre, chora, é manso, tem fome e sede de justiça, é misericordioso, puro de coração, pacífico, é perseguido por causa da justiça e caluniado por causa de Cristo (cf. Mt 5, 3-12). Os que disso se esquecem são como aqueles que não provarão da Ceia do Senhor (cf. Lc 14, 24). Esqueceram-se que o fruto do Espírito é um só, chama-se “caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança” (Gl 5, 22s) e assim também é simples a atitude daqueles em quem esse fruto é gerado, a felicidade de que gozam é única e una, porquanto “observar toda a lei e tropeçar em um só ponto é tornar-se culpado de tudo” (Tg 2, 10).

Eis aí o Legislador que sobe ao monte e enuncia a nova lei, a condição para “tomar parte no banquete do reino de Deus”, Ele abre o próprio coração e mostra-se como que desnudado em sua atitude mais íntima de total de humildade, generosidade e compaixão para com os seus. É este o sentimento de Cristo Jesus, sua pobreza, suas lágrimas, sua mansidão e humildade, sua misericórdia e sua paz, seu desejo de cumprir toda a justiça (cf. Mt 3, 15).

É Ele o caminho e a porta (cf. Jo 14, 6; 10, 9), é Ele o Sacerdote (cf. Hb 3, 1), o altar (cf. Hb 10) e o Cordeiro (cf. Jo 1, 29). É Ele a Palavra que ordena e que realiza. Feliz de quem tomar parte no banquete do reino de Deus, felizes “os que ouvem a Palavra de Deus e a observam” (Lc 11, 28), os que escutam a Sua voz (cf. Jo 18, 27), os que tem os mesmos sentimentos de Cristo Jesus: “ele, que é de condição divina, não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus. Mas despojou-se, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens, e por seu aspecto, reconhecido como homem; ele se rebaixou, tornando-se obediente até a morte, e morte numa cruz.” (Fl 2, 6-8)

Ora, é justo que tomem parte no banquete somente aqueles que por esse caminho e por essa porta puderem passar, ou não deveria o Senhor fazer o que quer com o que é Dele? (cf. Mt 20, 1-16) Se não queres crer nestas coisas, não esperes chegar a essa porta por outro caminho.

sábado, 25 de agosto de 2018

Damas Pobres

Mosteiro de Santa Clara do Deus Trino - Brasília/DF

Elas são pobres, talvez cumprindo o que dissera seu mestre, “pobres sempre os tereis” (Mt 26, 11); sinal profético e tremendo, imitam o mestre que em seu íntimo ouviram, seguraram-no e não o deixam partir (cf. Can 3, 4). Ei-las todas, o corpo sobriamente coberto, só aparecem seus rostos, resplendentes qual luz, marcados qual na promessa final com o selo do Eterno, assim geram o fruto perene do Espírito, “caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança” (Gl 5, 22s). Brilham no mundo qual cidade no monte e qual luz sobre a mesa para que todos as vejam! Vivem, porém, escondidas onde todos as podem achar, são de Cristo cativas e delas Cristo é prisioneiro, são suas esposas fiéis, imagens da Igreja, imagens da Virgem das virgens, prudentes, trabalham e rezam, perpétuo pulsar de vida e de graça aos de longe e aos de perto e ao mundo inteiro! Vemo-las silenciosas, risonhas e sérias e em tantos humores são sempre felizes: das dores que segredam no íntimo fazem sementes de flores e em seus rostos reluz a beleza de Cristo!

Ah, doce liberdade! Para elas o mundo é pequeno, as grades que as cercam o fazem menor e de lá elas vêem o resto do mundo atrás dessas grades: tantas prisões, cadeias, correntes, tantos medos e preocupações. Elas, porém, são livres e cuidam só do Senhor, dos seus interesses, dos desejos do Esposo que um dia escolheram - dia feliz! -, que um dia as escolheu para viverem só para Ele!

Não olham a vida de fora, mas a vida do Espírito, a vida melhor! Seu mundo é imenso, é já a eternidade no tempo, sua casa é um recorte do Céu e estão em todas as partes, onde está a Igreja: sem deixarem o claustro, alcançam todos os recantos do mundo, escuros ou claros, buscando a todos os que não conhecem a Cristo ou dele fugiram.

Nada falta ao que Cristo lhes pede, deram-lhe tudo, desposaram o Senhor do universo e a ele se uniram como Ele unira-se a nós, na pobreza, no silêncio, escondidas onde todos o podem achar.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Tua prece

Põe em mim tua prece,
desejo de ser um contigo
e trazer em mim tua força,
tua vida, teu vigor e luz,
eu ferido de outra morte
serei teu e tu serás meu
Deus, caminho e vida,
verdade e luz, capacidade
de ser o que tu queres

Tu podes tudo, eu não,
tu és Deus, eu homem,
tu és Homem, eu barro,
homem frágil, ferido,
e tu te abaixas quando
eu quero me exaltar
e me alcanças, levantas
do chão a mim traidor
e matas minha inimizade

Que Tu sejas em mim
é minha prece e a tua
que em mim ecoa ainda
hoje, é meu desejo
ali onde sou frágil,
onde me faltam forças,
onde sou cego e mudo
e coxo e surdo, em tudo
que sou ou quero ser

Sê forte em mim, tu,
que te fizeste homem
e te fizeste fraco, tu,
força de toda força,
vigor de todo vigor,
Sede forte em mim
que nada posso só,
que apenas erro se
me falta tua ajuda

domingo, 13 de maio de 2018

deus menor

Alguém disse que Deus está morto, mas talvez sua profecia não se tenha cumprido e aquele deus, reflexo dos ideais que o homem nutre a respeito de si mesmo, ainda esteja bem vivo em nosso inconsciente, em nossas ambições e em nossas pretensões megalomaníacas.

Disse ainda alguém que sonhávamos um deus onipotente que superasse nossas impossibilidades, esperança entorpecente que nos fazia esquecer nossas frustrações e nossa covardia. Um deus onipresente, diluído na realidade, permeando tudo para nos assegurar uma conduta moral a que nossa liberdade não pudesse macular. Forjamos um deus onisciente, para que, imaginando-nos observados, fosse-nos mais fácil seguir as regras que inventamos e atribuímos ao gênio divino. Estaria, porém, realmente morto esse deus imaginário, esse produto de nossa loucura? Creio que não, mas sobrevive multiplicado, presente nos ideais quase inconscientes de nosso tempo.

Ainda sonhamos, com mais força que outrora, com aquela onisciência, já não projetada numa entidade que veneramos, mas na pretensão de nos fazer oniscientes, capazes de um conhecimento instantâneo de tudo, sobretudo da vida alheia, de estranhos e familiares, próximos ou distantes, anônimos e celebridades. Queremo-nos, assim, onipresentes, não suportamos a monotonia do presente e do tangível, queremos alcançar tudo sabendo de tudo, estar virtualmente presentes em qualquer lugar, em todos os lugares, ser vistos por todos, apreciados por todos por nossa imagem ou nossas ideias, por mais tolas que sejam. Arvoramo-nos em nossa soberba pretendendo-nos onipotentes, possuidores de aboluta liberdade, senhores de nós mesmos e de tudo, como deuses. Ainda hoje repete-se a angústia inventada pela serpente, a angústia que nutrimos em nosso coração por não sermos deuses, por querermos sê-lo e não podermos, a angústia da invenção, da farsa, do ídolo pesado e oco, mudo, inerte, inútil.

Eis o ópio de nosso tempo, o super-homem que pretendemos ser, o ideal a que tende a vontade de poder que nutrimos com nossas fantasias à custa de nossa sanidade, em detrimento de nossas relações e, ouso dizê-lo, de nosso próprio ser. Destruímo-nos tentando fazer deuses de nós mesmos, deuses concorrentes que se pretendem únicos ou ao menos soberanos sobre todos os outros. Quisera esse deus estivesse morto, assim seria conhecido o verdadeiro, aquele que é, que era e será, o único, o Deus de Abraão, Issac e Jacó, o Deus de Jesus Cristo, Senhor do tempo e da história, que “pôs tudo sob os seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a Cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal” (Ef 1, 22).

——

“Àquele que, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou entendemos, a ele seja dada glória na Igreja, e em Cristo Jesus, por todas as gerações de eternidade. Amém.” (Ef 3, 20s)

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Ação de Graças

Hoje dou graças a Deus pela primeira vez que vi a luz, pelas lágrimas que por primeiro molharam meu rosto, pelo ar que naquele dia me “feria”, naquela festa de São Marcos Evangelista do ano do Senhor de 1986. Dou graças por aquele dia e por toda a história que se seguiu, história que me fez quem sou.

Quero que minha ação de graças, porém, não seja simples gratidão, mas dom, sacrifício, silêncio, eucaristia. A cada ano, no momento da celebração do Santo Sacrifício neste dia de São Marcos, sinto Deus me pedindo o mesmo que pediu àquele santo, a mesma humildade, a mesma simplicidade de coração, a mesma consciência das próprias fraquezas e o consequente abandono à Divina Providência que ele soube cultivar e acolher como dom de Deus.

“Deixa-te Paulo, e a Paulo segues,
vais imitando a sua lida;
perfeita é cópia que consegues,
dando por Cristo a própria vida”

Não pude conter as lágrimas quando rezava esses versos com a Igreja hoje, louvando a longanimidade de Marcos em sua decisão de dar a vida por Cristo. É o que celebro hoje, minha ação de graças pela vocação que recebi do Senhor, pela resposta que até hoje tenho sido capaz de dar-lhe e pelo desejo, embora frágil, de corresponder à altura de tão grande dádiva. Celebro meu natal com desejos de páscoa, renovando meu compromisso de seguir meu Mestre aonde Ele for, aonde Ele me enviar, e meu desejo, que é também uma prece de pedido de socorro, de ser capaz de oferecer-lhe tudo, tempo, suor, lágrimas, sangue e o que mais for preciso para amá-lo por toda eternidade.

São Marcos, rogai por nós!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

O Amor

O amor se esconde, nos becos, nas sombras, nos lugares frios e úmidos e escuros e esquecidos, no abandono e no esquecimento. O amor se esconde, naquela terra estéril esconde-se o amor, naquelas sombras que ocultam vidas que se refugiam, que fogem dos mortos, salvando suas vidas onde não há nada aos olhos dos outros, daqueles que vivem em trevas mais densas.

Quem encontrará o amor? Quem descobrirá sua luz senão aquele que o quiser plantar, que o quiser lançar nas sombras, nos lugares frios e úmidos e escuros e esquecidos, no abandono e no esquecimento?

O amor floresce tão logo é plantado, é grande porque é pequeno, semente lançada na terra e regada a suor, regada de sangue, é flor e fruto de um dom integral, de uma vida que escolhe esquecer-se por outra, por aquela abandonada, esquecida ali onde o amor se esconde, na sombra e no frio, no abandono e no esquecimento.

Encontra-o quem já o possui, quem se faz amor, quem vai ao encontro do outro e se faz próximo e se esquece de si, o amor não busca seu próprio interesse, não guarda rancor, não vive nas trevas nem a sombra o pode conter, o amor não mata nem pode morrer, é mais forte que a morte e faz reviver.

O amor se esconde esperando encontros para aparecer. Ele já nos atrai, deixemo-nos mover!

sábado, 17 de março de 2018

Coroa de Cristo

Coroa de Cristo, coroai-me, purificai meus pensamentos e sentimentos de qualquer vestígio de orgulho, vaidade e presunção que me possam arrastar para longe de Cristo. Ensinai-me a humildade de meu Redentor e Salvador, para jamais pretender conseguir por minhas próprias forças o que somente a graça de Deus me pode dar: a justificação e a Salvação Eterna.

Manto ensanguentado de Cristo, cobri-me, cobri a vergonha de meu pecado e de minha rebeldia e ensinai-me a mansidão do Verbo Encarnado, o silêncio e a livre submissão à vontade do Pai, a fim de que jamais me rebele quando se dilatar o tempo das penas em vista do prêmio da Glória futura.

Sudário de Cristo, envolvei-me, fazei-me viver já morto para a vida presente, olhos fixos na Promessa de Vida Eterna feita por meu Senhor, sepultado para o pecado, vivo para o Reino de Deus.

Santa Cruz de Cristo, sustentai-me, servi de bastão para acelerar a marcha para o cume, ao mais alto cume, ao Calvário de minha existência tão breve, para que Ele, Meu Jesus, cresça e eu diminua, que Ele apareça em minha pequenez.

Paixão de Cristo, atraí-me, amor de Cristo, consumi-me, sede meu motivo, razão de cada palavra e de cada silêncio, de cada gesto, de cada sacrifício, de cada escolha e de cada renúncia e da opção fundamental de minha vida.

Olhar amoroso de Cristo, consolai-me em meus medos e frustrações, em minhas esperas sede meu conforto e minha força!

Jesus Cristo, ternura do Pai, chamai-me e perdoai minhas culpas, a fim de que, livre de todo fardo, vos siga fielmente até o fim de meus dias e possa merecer estar contigo no Céu por toda a eternidade. Assim seja.